São Paulo, domingo, 06 de setembro de 2009

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GILBERTO DIMENSTEIN

Segurança dos ricos está em Heliópolis


Os episódios da semana passada não representam nem remotamente o espírito daquela comunidade


EMPRESÁRIOS e altos executivos descobriram que deixar o dinheiro no colchão em casa, sem render um único centavo, pode ser um bom investimento -é gente que obviamente conhece o funcionamento do mercado financeiro.
O hábito se espalha entre milionários da cidade de São Paulo, apavorados com a possibilidade de terem suas casas invadidas, tamanha a onda de ataques nos bairros nobres - em poucos dias, dois secretários estaduais foram vítimas. O dinheiro evitaria um trauma maior: os ladrões ficariam satisfeitos e iriam rapidamente embora.
Revelado pela coluna da Mônica Bergamo, o "vale-ladrão" ajuda a entender por que, na semana passada, a polícia lançou uma operação especial para proteger os bairros mais ricos, com foco nos condomínios. A conclusão óbvia é que, apesar de parecerem castelos medievais com recursos tecnológicos e cercados por policiais privados, os residenciais vendem a ilusão de segurança, mas, por vezes, chamam a atenção.
A melhor segurança dos ricos está em Heliópolis, a maior favela de São Paulo, onde, na semana passada, policiais entraram em choque com moradores, depois que uma menina morreu com um tiro supostamente disparado por um guarda-civil.
Há indícios (sólidos, diga-se) de que as manifestações tenham sido estimuladas, pelo menos em parte, por traficantes.


 

Acompanho de perto as experiências comunitárias de Heliópolis há quase dez anos. Sinto-me em condições de garantir que aquela baderna nem remotamente espelha a articulação desenvolvida ali. É só um grupo de marginais que, espertamente, soube manipular os jovens.
A proteção dos ricos reside no fato de que lá se costura um projeto de bairro educador -um modelo de comunidade inteligente, segundo a classificação da Escola de Administração de Harvard, que, em documento recente, definiu como deveriam ser as cidades do futuro para combater a pobreza e, portanto, a marginalidade. Não conheço, no Brasil, nada parecido.


 

O bairro educador é o esforço de integrar todas as ações públicas e privadas para aprimorar o capital humano.
Nesse arranjo educativo, Ruy Othake vem, há anos, fazendo intervenções urbanísticas, colorindo casas e desenhando projetos; o professor Antonio Candido ajudou a montar a biblioteca; Sílvio Bacarelli montou uma orquestra sinfônica de renome mundial. A rádio comunitária dá dicas, várias vezes ao dia, de ofertas culturais da cidade e recomendações sobre saúde pública -o DJ dirige a rádio e organiza baladas em que é proibido usar maconha ou bebida alcoólica.
Um galpão abandonado será um centro cultural, acoplado a uma escola. Inaugurou-se no CEU uma escola de ensino técnico integrada às escolas regulares -os próprios moradores disseram quais deveriam ser os cursos técnicos. Todos os espaços se comunicam.
São os professores que organizam todos os anos passeatas contra a violência. Uma das escolas (Campos Sales) revolucionou todo o seu sistema de ensino para abrigar as aulas voltadas ao cotidiano, com ênfase nos direitos humanos e na diversidade. O Unicef está montando ali um plano batizado de plataforma dos centros urbanos, para gerar redes de proteção das crianças e dos jovens -um dos propósitos daquela entidade da ONU é disseminar a experiência em escala mundial.


 

Tanto os projetos sociais como as obras urbanísticas e habitacionais são uma rede em que se misturam recursos municipais, estaduais e federais -o que é raríssimo.
O essencial é que, no conceito do bairro-educador, trabalha-se da creche até o ensino profissionalizante, passando pela integração dos serviços de lazer, cultura, assistência social e saúde.
Os episódios da semana passada não representam nem remotamente o espírito daquela comunidade. Mas revelam que ainda há muito tempo e esforço pela frente para ali se transformar num condomínio sem muros e educativo.


 

A melhor segurança dos ricos não está nos seus muros nem no policiamento privado. Está na chance de ideias como o bairro-educador de Heliópolis darem certo e se espalharem pelas regiões metropolitanas.
Imaginar-se seguro numa sociedade que não para de produzir marginais é semelhante a apostar que o dinheiro debaixo do colchão serve como segurança contra o crime.


 

PS - Coloquei no meu site (www.dimenstein.com.br) uma seleção de textos que venho escrevendo sobre as experiências de Heliópolis.

gdimen@uol.com.br


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