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São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2003

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DIREITOS HUMANOS

Para Asma Jahangir, sistema protege alguns e persegue outros

Relatora da ONU sugere revisão do Código Penal

Felipe Varanda/Folha Imagem
Asma Jahangir (sentada), relatora da ONU, em favela do Rio


TALITA FIGUEIREDO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Mudanças no Código Penal para que os julgamentos de assassinatos sejam agilizados são as principais sugestões que a relatora das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, fará ao governo brasileiro em seu relatório final sobre a visita ao país.
Para a relatora, há no Brasil "um sistema que existe para proteger algumas pessoas e perseguir outras. O sistema judicial brasileiro é feito de uma forma pela qual parece que nunca será feita Justiça. O governo tem muito trabalho pela frente."
Ela vai sugerir ainda que o Ministério Público tenha competência para investigar os policiais acusados de "execuções sumárias", a independência das polícias técnicas e investimentos na qualificação das polícias no trabalho de investigação.
Asma Jahangir acha que a ONU deveria mandar outro observador ao Brasil apenas para analisar o sistema judiciário.
A advogada paquistanesa de 51 anos recebeu a Folha no hotel da zona sul do Rio em que está hospedada desde sexta-feira.
Jahangir está desde 16 de setembro no país. Ela visitou cinco Estados, além do Distrito Federal, e volta quarta-feira para Genebra, onde levará entre três e seis meses para terminar o relatório.
 

Folha - O que mais chocou a senhora nessas três semanas?
Asma Jahangir -
Eu já vi tanta coisa ruim neste trabalho que faço que de alguma forma não consigo mais ficar chocada. Mas o que mais tem me chateado são os testemunhos das mães que perderam seus filhos mortos por agentes do Estado. O pior é que elas não conseguem nem ser ouvidas pelas pessoas do Estado. O que me atingiu mais foi que em todos os testemunhos as mães tentam me convencer que seus filhos são inocentes. Elas ficam implorando pelo reconhecimento da inocência deles, em vez de se sentirem ultrajadas com o que aconteceu com as crianças.

Folha - Quatro dias depois de prestar depoimento à senhora, o agricultor Flávio Manoel da Silva [única testemunha que havia sobrevivido até então a um grupo de extermínio de Pernambuco] foi assassinado. Como a senhora recebeu a notícia?
Jahangir -
Quando soube, demorei a perceber de quem se tratava. Quando o fiz, lembrei que ele estava extremamente temeroso, mesmo quando estava conosco. É trágico. Você se sente mal, triste e pensa no que poderia ter feito para prevenir. E aumenta nossa crença de que aqui assassinos podem escapar de punições.

Folha- O que falta para que os criminosos sejam punidos?
Jahangir -
Acho que o problema começa com o legado de um sistema que existe para proteger algumas pessoas e perseguir outras. O sistema judicial é feito de uma forma pela qual parece que nunca será feita Justiça. O governo tem muito trabalho pela frente.

Folha - Quais sugestões a senhora fará em seu relatório?
Jahangir -
Uma das primeiras sugestões é que se faça um projeto grande de mudanças.
É preciso rever as limitações da lei. Em alguns lugares, os promotores disseram que as pessoas se aproveitam dessas limitações, fazendo com que os julgamentos demorem a acontecer. Sugiro ainda que se analise a questão da necessidade de julgar novamente alguém que foi condenado a mais de 20 anos de prisão.
É necessário também fortalecer os ministérios públicos e dar aos promotores a competência legal para investigar casos em que policiais são acusados de execuções sumárias. É importante fazer com que os departamentos de polícia técnica sejam independentes, assim como investir no treinamento e na habilidade em investigação dos policiais civis. Não é só dar mais armas.
Vou recomendar também que venha ao Brasil o relator da ONU para assuntos de independência judiciária, para dar uma olhada no sistema judiciário.

Folha - Pelo que a senhora viu no Brasil, é possível comparar a situação de violação de direitos humanos com outros países?
Jahangir -
Não gosto de fazer comparações. A democracia do Brasil está se enraizando. Vocês têm uma sociedade muito tolerante e estão indo para a frente em várias direções.

Folha - Como a senhora analisa o trabalho da sociedade civil nos casos de defesa dos direitos humanos no Brasil?
Jahangir -
É ótimo, muito organizado. Elas [as organizações] trabalham com bastante método, o que acontece pouco em outros países. Eu recebi, em todos os Estados, relatórios feitos por ONGs e pela sociedade civil. Em vários lugares, as ONGs me encontraram nos escritórios de promotores. Em outros, secretários de Estado estavam nos encontros promovidos pela sociedade civil e concordavam com ela.

Folha - Qual a avaliação da senhora em relação aos encontros com representantes do governo do Rio na última sexta-feira?
Jahangir -
O encontro com o chefe da Polícia Civil [delegado Álvaro Lins] foi muito bom. O encontro com o procurador-geral do Ministério Público Estadual [Antônio Vicente] foi decepcionante, porque parece que não se conseguia captar que havia uma razão para eu estar lá, que são as execuções sumárias. Com o secretário de Administração Penitenciária [Astério Pereira dos Santos] foi pior ainda. Se alguém que está nesse cargo nem sabe dizer quantas pessoas morreram sob custódia do Estado, é muito triste. Ele queria falar sobre tudo, menos sobre a razão pela qual estou aqui.

Folha - Em que Estado houve melhores resultados?
Jahangir -
Em vários consegui perceber uma vontade de mudar, de cooperar. Mas no Espírito Santos consegui uma das melhores respostas.


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