São Paulo, quinta-feira, 07 de abril de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

Português, pero no mucho

Na televisão, veicula-se um comercial de uma empresa que hospeda sites (ou "sítios", como dizem os portugueses). O personagem principal -supostamente português, dono de uma padaria- diz a um rapaz que o estabelecimento tem página na internet. Ao encerrar a conversa, o comerciante pergunta ao jovem: "Entendestes?".
Pois bem, será que um português "legítimo" diria "entendestes"? Creio que não, ou seja, não diria, não diz. Em Portugal, o tratamento direto informal é feito na segunda do singular ("tu"), com os verbos conjugados de acordo com o que é considerado padrão na língua culta. Nesse padrão, a forma da segunda pessoa do singular do pretérito perfeito é "entendeste"; a flexão "entendestes" é da segunda do plural ("vós").
Na linguagem oral brasileira, o pronome "tu" é usado em diversas regiões, ora com o verbo conjugado no que na língua padrão se chama de segunda pessoa ("tu fizeste", "tu foste", "tu entendeste"), ora com o verbo conjugado no que na língua padrão se chama de terceira pessoa ("tu fez", "tu foi", "tu entendeu", "tu viu").
Entre nós, a flexão que se vê na fala do "português" do comercial é mais comum na música popular e na escrita poética popular mais recentes (experimente digitar no Google "Tu te fostes de mim" e veja a quantidade de textos em que aparecem casos semelhantes).
Já citei neste espaço a primorosa letra de "Dinamarca", de Gilberto Gil (a música é de M. Nascimento), em que se encontra esta passagem: "Desde o dia em que tu partistes". Ao gravar "Foi Assim", de Paulo André e Ruy Barata, Fafá de Belém trocou "tu te foste de mim" (como está na letra de R. Barata) por "tu te fostes de mim".
Como sempre digo neste espaço, não cabe a um lingüista julgar os procedimentos dos falantes; cabe-lhe interpretá-los e tentar explicá-los a quem se interessa pelo tema. Cabe-lhe também mostrar como funciona a coisa nas variedades formais da língua (sem dúvida, é esse o principal interesse dos leitores, cuja maioria certamente não é especializada em lingüística).
A explicação do que ocorre na letra de "Foi Assim" e na de "Dinamarca", na fala do "português" da peça publicitária etc. já foi vista aqui, há algum tempo, a partir de exemplos em que ocorre procedimento semelhante, mas não custa repeti-la: oito das nove flexões da segunda pessoa do singular (dos tempos simples do indicativo e do subjuntivo) terminam em "s" (entendes, entendias, entenderas, entenderás, entenderias, entendas, entendesses, entenderes, por exemplo).
Na língua padrão, a única flexão da segunda pessoa do singular que não termina em "s" é justamente a do pretérito perfeito do indicativo (entendeste, foste, leste, ficaste, fizeste, transformaste etc.). A conclusão não é difícil: a maioria contamina a exceção. Qual é o xis do problema, então? É o fato de que a linguagem denuncia que o personagem não é fiel à realidade à qual supostamente pertence.
"Mutatis mutandis", o episódio me lembra os inúmeros textos que circulam pela internet, "escritos" por L. F. Verissimo, M. Quintana etc. O mínimo de conhecimento da linguagem peculiar à obra de cada um desses (e de outros) escritores basta para que se perceba que a coisa é falsa. Eu mesmo sou vítima de algumas dessas pérolas. Numa delas ("Direto do Professor Pascoale"), listam-se bobagens que nunca escrevi. Só para começar, meu nome é Pasquale. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
@ - inculta@uol.com.br


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