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PASQUALE CIPRO NETO
Português, pero no mucho
Na televisão, veicula-se
um comercial de uma empresa que hospeda sites (ou "sítios", como dizem os portugueses). O personagem principal
-supostamente português, dono
de uma padaria- diz a um rapaz que o estabelecimento tem
página na internet. Ao encerrar a
conversa, o comerciante pergunta
ao jovem: "Entendestes?".
Pois bem, será que um português "legítimo" diria "entendestes"? Creio que não, ou seja, não
diria, não diz. Em Portugal, o tratamento direto informal é feito na
segunda do singular ("tu"), com
os verbos conjugados de acordo
com o que é considerado padrão
na língua culta. Nesse padrão, a
forma da segunda pessoa do singular do pretérito perfeito é "entendeste"; a flexão "entendestes"
é da segunda do plural ("vós").
Na linguagem oral brasileira, o
pronome "tu" é usado em diversas regiões, ora com o verbo conjugado no que na língua padrão
se chama de segunda pessoa ("tu
fizeste", "tu foste", "tu entendeste"), ora com o verbo conjugado
no que na língua padrão se chama de terceira pessoa ("tu fez",
"tu foi", "tu entendeu", "tu viu").
Entre nós, a flexão que se vê na
fala do "português" do comercial
é mais comum na música popular
e na escrita poética popular mais
recentes (experimente digitar no
Google "Tu te fostes de mim" e veja a quantidade de textos em que
aparecem casos semelhantes).
Já citei neste espaço a primorosa letra de "Dinamarca", de Gilberto Gil (a música é de M. Nascimento), em que se encontra esta
passagem: "Desde o dia em que tu
partistes". Ao gravar "Foi Assim",
de Paulo André e Ruy Barata, Fafá de Belém trocou "tu te foste de
mim" (como está na letra de R.
Barata) por "tu te fostes de mim".
Como sempre digo neste espaço,
não cabe a um lingüista julgar os
procedimentos dos falantes; cabe-lhe interpretá-los e tentar explicá-los a quem se interessa pelo tema.
Cabe-lhe também mostrar como
funciona a coisa nas variedades
formais da língua (sem dúvida, é
esse o principal interesse dos leitores, cuja maioria certamente não
é especializada em lingüística).
A explicação do que ocorre na
letra de "Foi Assim" e na de "Dinamarca", na fala do "português" da peça publicitária etc. já
foi vista aqui, há algum tempo, a
partir de exemplos em que ocorre
procedimento semelhante, mas
não custa repeti-la: oito das nove
flexões da segunda pessoa do singular (dos tempos simples do indicativo e do subjuntivo) terminam em "s" (entendes, entendias,
entenderas, entenderás, entenderias, entendas, entendesses, entenderes, por exemplo).
Na língua padrão, a única flexão da segunda pessoa do singular que não termina em "s" é justamente a do pretérito perfeito do
indicativo (entendeste, foste, leste,
ficaste, fizeste, transformaste etc.).
A conclusão não é difícil: a maioria contamina a exceção. Qual é o
xis do problema, então? É o fato
de que a linguagem denuncia que
o personagem não é fiel à realidade à qual supostamente pertence.
"Mutatis mutandis", o episódio
me lembra os inúmeros textos que
circulam pela internet, "escritos"
por L. F. Verissimo, M. Quintana
etc. O mínimo de conhecimento
da linguagem peculiar à obra de
cada um desses (e de outros) escritores basta para que se perceba
que a coisa é falsa. Eu mesmo sou
vítima de algumas dessas pérolas.
Numa delas ("Direto do Professor
Pascoale"), listam-se bobagens
que nunca escrevi. Só para começar, meu nome é Pasquale. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
@ - inculta@uol.com.br
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