São Paulo, quinta-feira, 07 de julho de 2005 |
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PASQUALE CIPRO NETO "De ti gosto mais que outra qualquer"
Na semana passada, tratamos do verbo "preferir".
Nosso mote foi o início da letra de
"Metamorfose Ambulante", de
Raul Seixas ("Eu prefiro ser essa
metamorfose ambulante do que
ter aquela velha opinião...").
Vimos que, nos registros formais da língua, prevalece a construção "preferir X a Y". Vimos
também que a construção adotada por Raul ("preferir X do que
Y" -que, é bom repetir, não encontra abrigo na linguagem escrita formal) é comum na oralidade
e em muitos registros literários.
Por fim, vimos que a construção
"preferir (mais) X do que Y" se
explica pela influência do traço
semântico de comparação, presente em "preferir". Esse traço
acaba levando o falante a empregar com "preferir" a mesma estrutura que emprega com verbos
como "gostar" ("gosto mais disso
do que daquilo"), "apreciar" etc.
Pois bem. Alguns leitores escreveram para perguntar se nas estruturas de comparação é obrigatório o uso de "do que" ou se basta usar "que". Tradução: deve-se
dizer/escrever "Elas sabem muito
mais do que vocês" ou "Elas sabem muito mais que vocês"?
Vamos direto ao ponto: as duas
formas são igualmente comuns
na língua e encontram abrigo
tanto na fala quanto na escrita.
Moral da história: "Ela é muito
mais sensível que você" e "Ela é
muito mais sensível do que você"
são construções equivalentes.
Por falar em estruturas comparativas, convém lembrar que, às
vezes, um mínimo descuido "operacional" pode causar ruídos ou
"sentido estranho", como gosta de
dizer a Unicamp em seu vestibular. O leitor conhece a frase que
está no título desta coluna? Trata-se de um trecho de "Até Amanhã", de Noel Rosa. "Até amanhã
se Deus quiser / Se não chover, eu
volto pra te ver, ó mulher / De ti
gosto mais que outra qualquer",
diz a letra em seu início.
E então? Que se entende da passagem "De ti gosto mais que outra
qualquer"? A intenção do poeta
parece clara: dizer algo como
"Gosto mais de ti que (gosto) de
outra qualquer". A leitura literal
do trecho permite essa interpretação? Parece claro que não. Ao pé
da letra, essa passagem se traduz
por "O que sinto por ti é superior
ao que qualquer pessoa sente ou
possa sentir (por ti)". Uma simples leitura da letra basta para
que se perceba que essa interpretação é descabida, embora seja a
resultante da literalidade.
O sentido desejado por Noel se
traduz com o simples acréscimo
da preposição "de", regida por
"gosto" em sua (implícita) segunda ocorrência ("De ti gosto mais
que [gosto] de outra qualquer").
O grande Noel deve ter sido
traído pela melodia. Se você a conhece, tente cantá-la substituindo
o texto original por "De ti gosto
mais que de outra qualquer".
Tentou? Não dá muito certo, não.
A situação é propícia para
(re)lembramos um caso muito comum na imprensa, especialmente
nos cadernos que tratam de economia. Leia esta passagem: "Prestações menores que a concorrência". Que tal? O que se compara?
Ao pé da letra, os elementos comparados são as prestações e a concorrência. Parece óbvio que os alvos da comparação são outros (as
prestações do anunciante e as
[prestações] da concorrência).
Moral da história: a estrutura
não foi bem montada. Vamos lá:
"Prestações menores (do) que as
da concorrência". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras @ - inculta@uol.com.br Texto Anterior: Direito de escolha: Arma "tira vidas", mas "evita roubo" Próximo Texto: Trânsito: CET vai monitorar tráfego em vias próximas ao Anhembi Índice |
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