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PASQUALE CIPRO NETO
"Melodias vindo lá do quintal"
Fernando Brant escreveu algumas das mais belas
letras dos últimos 40 anos da música brasileira: "Travessia", "Canção da América", "Coração Civil", "Ponta de Areia", "Conversando no Bar" etc., etc., etc.
O último disco de Milton Nascimento (o emocionante "Pietà")
começa com "A Feminina Voz do
Cantor", mais uma obra-prima
de F. Brant, que relata a "formação" do cantor Milton Nascimento (a música é do próprio Milton):
"Minha mãe quem falou / Minha voz vem da mulher / Minha
voz veio de lá, de quem me gerou /
Quem explica o cantor / Quem
entende essa voz / Sem as vozes
que ele traz no interior? / Sem as
vozes que ele ouviu / Quando era
aprendiz / Como pode sua voz ser
uma Elis? / Sem o anjo que escutou, / a Maria Sapoti / Quando é
que seu cantar iria se abrir? / Feminino é o dom / que o leva a entoar / a canção que sua alma sente no ar / Feminina é a paixão / O
seu amor musical...".
O leitor notou a vírgula depois
de "escutou" ("Sem o anjo que escutou, a Maria Sapoti")? Que faz
ela aí? Separa (indevidamente) o
verbo "escutar" de seu complemento? Não e não, caro leitor.
Não foi o anjo que escutou a
Maria Sapoti. Quem escutou foi o
protagonista da letra de Brant ("o
cantor", que, como já vimos, é o
próprio Milton). O cantor escutou
o anjo, e o anjo é a Maria Sapoti
(que, para quem não sabe, é Ângela Maria -influência viva na
formação de muitos dos nossos
cantores e cantoras).
Na letra de Brant, o termo "a
Maria Sapoti" funciona como
aposto (termo explicativo) de
"anjo". A vírgula cumpre justamente o papel de separar o aposto
do termo esclarecido. Para que se
dissesse que o anjo escutou a Maria Sapoti, seria necessário eliminar a vírgula ("Sem o anjo que escutou a Maria Sapoti"). Essa interpretação, no entanto, seria desmentida pelo contexto. Basta ler
com atenção a letra para perceber
que o anjo é mesmo Maria Sapoti.
Por falar em "anjo", certamente
não foi por acaso que Brant escolheu essa palavra para falar de
Ângela Maria ("anjo" vem do latim "angelu"). Evoé, Brant!
Vejamos agora outra passagem
da letra: "Ele vai sempre lembrar /
Da lenha de um fogão / E das melodias vindo lá do quintal". Por
que "vindo", e não "vindas"?
Vamos lá: o verbo "vir" é o único da língua (na verdade, ele e
seus derivados -"intervir", "provir", "desavir", "convir" etc.) que
tem particípio e gerúndio iguais.
O particípio de "chegar" é "chegado" ("Ele já tinha chegado lá"); o
gerúndio é "chegando" ("Ele está
chegando"). O particípio de "vir"
é "vindo" ("Ele já tinha vindo
aqui"); o gerúndio também é
"vindo" ("Ele está vindo").
Se tivesse sido empregada a forma "vindas", flexão do particípio,
a construção "melodias vindas lá
do quintal" equivaleria a algo como "melodias provenientes/procedentes lá do quintal". A idéia
do poeta, no entanto, não era essa. Ao empregar "vindo" ("melodias vindo lá do quintal"), que,
nesse caso, equivale a "chegando", Brant usa o gerúndio para
expressar um de seus mais freqüentes valores: o de indicar um
processo em seu desenvolvimento.
Em outras palavras, o cantor
vai sempre se lembrar dos fios
que, como os fios dos galos que tecem a manhã cabralina ("Tecendo a Manhã", antológico poema
de João Cabral de Melo Neto), teciam (e tecem) o percurso das melodias (do quintal até ele). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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