São Paulo, quinta-feira, 07 de outubro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Melodias vindo lá do quintal"

Fernando Brant escreveu algumas das mais belas letras dos últimos 40 anos da música brasileira: "Travessia", "Canção da América", "Coração Civil", "Ponta de Areia", "Conversando no Bar" etc., etc., etc.
O último disco de Milton Nascimento (o emocionante "Pietà") começa com "A Feminina Voz do Cantor", mais uma obra-prima de F. Brant, que relata a "formação" do cantor Milton Nascimento (a música é do próprio Milton):
"Minha mãe quem falou / Minha voz vem da mulher / Minha voz veio de lá, de quem me gerou / Quem explica o cantor / Quem entende essa voz / Sem as vozes que ele traz no interior? / Sem as vozes que ele ouviu / Quando era aprendiz / Como pode sua voz ser uma Elis? / Sem o anjo que escutou, / a Maria Sapoti / Quando é que seu cantar iria se abrir? / Feminino é o dom / que o leva a entoar / a canção que sua alma sente no ar / Feminina é a paixão / O seu amor musical...".
O leitor notou a vírgula depois de "escutou" ("Sem o anjo que escutou, a Maria Sapoti")? Que faz ela aí? Separa (indevidamente) o verbo "escutar" de seu complemento? Não e não, caro leitor.
Não foi o anjo que escutou a Maria Sapoti. Quem escutou foi o protagonista da letra de Brant ("o cantor", que, como já vimos, é o próprio Milton). O cantor escutou o anjo, e o anjo é a Maria Sapoti (que, para quem não sabe, é Ângela Maria -influência viva na formação de muitos dos nossos cantores e cantoras).
Na letra de Brant, o termo "a Maria Sapoti" funciona como aposto (termo explicativo) de "anjo". A vírgula cumpre justamente o papel de separar o aposto do termo esclarecido. Para que se dissesse que o anjo escutou a Maria Sapoti, seria necessário eliminar a vírgula ("Sem o anjo que escutou a Maria Sapoti"). Essa interpretação, no entanto, seria desmentida pelo contexto. Basta ler com atenção a letra para perceber que o anjo é mesmo Maria Sapoti.
Por falar em "anjo", certamente não foi por acaso que Brant escolheu essa palavra para falar de Ângela Maria ("anjo" vem do latim "angelu"). Evoé, Brant!
Vejamos agora outra passagem da letra: "Ele vai sempre lembrar / Da lenha de um fogão / E das melodias vindo lá do quintal". Por que "vindo", e não "vindas"?
Vamos lá: o verbo "vir" é o único da língua (na verdade, ele e seus derivados -"intervir", "provir", "desavir", "convir" etc.) que tem particípio e gerúndio iguais. O particípio de "chegar" é "chegado" ("Ele já tinha chegado lá"); o gerúndio é "chegando" ("Ele está chegando"). O particípio de "vir" é "vindo" ("Ele já tinha vindo aqui"); o gerúndio também é "vindo" ("Ele está vindo").
Se tivesse sido empregada a forma "vindas", flexão do particípio, a construção "melodias vindas lá do quintal" equivaleria a algo como "melodias provenientes/procedentes lá do quintal". A idéia do poeta, no entanto, não era essa. Ao empregar "vindo" ("melodias vindo lá do quintal"), que, nesse caso, equivale a "chegando", Brant usa o gerúndio para expressar um de seus mais freqüentes valores: o de indicar um processo em seu desenvolvimento.
Em outras palavras, o cantor vai sempre se lembrar dos fios que, como os fios dos galos que tecem a manhã cabralina ("Tecendo a Manhã", antológico poema de João Cabral de Melo Neto), teciam (e tecem) o percurso das melodias (do quintal até ele). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br


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