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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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JUSTIÇA MÍOPE

Processos indevidos ocorrem quando criminosos "sujam" o nome de terceiros ao usar documentos roubados ou perdidos

Erros de identificação condenam inocentes

GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ela chegou a responder a 32 processos criminais, com pelo menos cinco condenações. Ele foi preso duas vezes por tráfico de drogas e tem ficha de ex-detento. O terceiro foi acusado de portar uma arma com numeração raspada. O quarto e o quinto são considerados foragidos da cadeia.
Pela folha de antecedentes, os cinco parecem ser bandidos perigosos. Mas Gema Zortéa, Helder Miguel Fernandes Neves, Walter Bento Rodrigues, Osvaldo Ferreira dos Santos e Mateus de Jesus Machado são apenas vítimas. Eles não tinham antecedentes criminais até que perderam ou tiveram os documentos roubados.
Os verdadeiros criminosos usavam as identidades de terceiros quando foram presos. Produziram outros documentos com as informações ou simplesmente colocaram sua foto na cédula de identidade. A polícia acreditou e o nome errado foi parar na Justiça. Inocentes foram presos ou condenados por falha de identificação.
Cinco casos encontrados pela Folha não mostram um problema inusitado, mas situações cada vez mais frequentes e que contrastam com o investimento em tecnologia em outros setores da polícia e da Justiça, segundo avaliação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, de procuradores da PAJ (Procuradoria de Assistência Judiciária) de São Paulo e de advogados.
"Existem tantos avanços tecnológicos em alguns setores e, em outros, as coisas continuam muito rudimentares", afirmou o procurador da PAJ Geraldo Sanches de Carvalho, que atua na Vara das Execuções Criminais de São Paulo, a maior do país.
Carvalho defendeu a auxiliar geral Gema Inês Zortéa, 49. Sem nunca ter entrado em uma delegacia, ela descobriu, no final de 1998, que era acusada em 32 processos criminais. Tinha perdido a cédula de identidade, a mesma em que a verdadeira criminosa colocou sua foto, usando-a para cometer furtos, ser presa, sair da cadeia e voltar a furtar.
Como Gema deixou de sair de casa, com medo de ser presa, sua irmã, Clara Zortéa, 39, se encarregou de examinar os casos. Ela se espantou com o fato de a verdadeira criminosa ter usado a identidade de uma descendente de italianos sem despertar suspeitas, apesar de ser negra.
Clara fez uma peregrinação por cartórios que durou mais de um ano. "Mal resolvia um processo e aparecia outro. Foi um ano de muita luta, mas deu certo." O cobrador de ônibus Mateus de Jesus Machado não teve a mesma sorte e ficou um ano e quatro meses preso por um crime que não cometeu. "Falava que era inocente, mas todos riam. Não há maior humilhação do que essa."

Sem estatísticas
Não há levantamentos precisos sobre os casos de erros judiciários causados por falhas de identificação. Mas números de atendimentos da PAJ mostram que esses problemas não são raros. Só o plantão criminal da PAJ na capital paulista atendeu mais de 30 casos neste ano -sem contar os serviços dos procuradores da Vara das Execuções Criminais e a atuação de advogados particulares.
"Isso pode acontecer com qualquer pessoa", disse a procuradora Lorete Hirs Brilhante, que coordena o plantão criminal da PAJ. Em apenas duas horas em que a reportagem esteve no plantão, três pessoas que tiveram seus documentos usados por criminosos procuraram o serviço gratuito.
Para a procuradora, todos erram um pouco: a polícia, por não identificar o preso corretamente, a Justiça, por não perceber a falha, e a legislação, por restringir os casos de identificação criminal. "Muitas vezes, o documento tem erros grosseiros", disse.
Ela defende mudanças em trecho da Constituição que estabelece que "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei". A identificação civil consiste na apresentação de documentos originais. Na criminal, são coletadas as digitais do suspeito, que serão comparadas com os registros do IRGD (Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt).
O item foi criado para evitar constrangimentos. "Até que ponto algo que foi feito para evitar constrangimentos não abre a possibilidade de haver um erro grave?", questionou a procuradora.
Para Fernando Castelo Branco, conselheiro da OAB de São Paulo e professor de Processo Penal da PUC (Pontifícia Universidade Católica), mudanças na legislação não vão resolver o problema. "O Estado deveria estar aparelhado para que esses problemas não viessem a acontecer."
O juiz aposentado e doutor em direito penal Luiz Flávio Gomes também acredita que a causa do problema não está na lei. "Com um pouco de boa vontade, a polícia evitaria muitos erros."



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