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MOACYR SCLIAR
A corrente da vida
Engoli algo que vale a pena. Não foi um panetone vagabundo, desses que os políticos distribuem no Natal
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Mulher é presa após engolir corrente de
ouro em joalheria. Uma dona-de-casa de
52 anos foi presa após engolir uma corrente de ouro numa joalheria do centro
do Rio. Ela foi indiciada por tentativa de
furto. Uma radiografia confirmou que a
corrente está em seu estômago. Quando
expelir a peça, a mulher será encaminhada à cadeia. Segundo a polícia, Fátima
Carceiro foi a uma joalheria e pediu para
ver joias. Enquanto tirava peças da vitrine, o vendedor percebeu o sumiço de
uma corrente. Ele desconfiou e chamou
a polícia. Fátima admitiu o furto. Cotidiano
"SENHOR" delegado, antes de
mais nada, e ao contrário de outras pessoas acusadas que clamam inocência, quero lhe dizer que
admito minha transgressão. Mais:
sempre soube que acabaria presa. É
um destino que está no meu nome.
Quem se chama Carceiro, senhor
delegado, dificilmente escapará ao
cárcere, não é mesmo?
Isto posto, quero dizer que não estou arrependida. Ao contrário, sinto-me perfeitamente tranquila. Fiz
o que queria fazer. Há muito tempo
eu cobiçava esta corrente de ouro,
senhor delegado. Era a joia da minha
vida, feita por um artista joalheiro
especialmente para mim. Prova disso é que ficou exposta um tempão e
ninguém a levou. A corrente de ouro
estava à minha espera.
Mas havia um problema: eu não tinha dinheiro para comprá-la. Essa
desigual distribuição de renda, o senhor sabe... Uma coisa que precisa
ser corrigida, e decidi tomar a iniciativa neste sentido. Resolvi apossar-me da corrente. Não foi difícil: entrei
na joalheria, pedi para ver pulseiras,
anéis, colares. E a corrente. Enquanto o vendedor tirava uma joia da vitrine eu, mais que depressa, engoli a
corrente. Engoli sem água, em seco,
e olhe que uma corrente não é um
comprimido qualquer. Mas é que a
corrente queria ser engolida, sabe?
Queria, por assim dizer, pular para
dentro de mim.
Agora: tive um pequeno azar. Eu
esperava que o vendedor, tendo colocado tanta coisa sobre o balcão,
não desse falta da corrente. Mas era
um obsessivo esse vendedor. Sabia
de cada joia da loja, e assim imediatamente perguntou pela corrente.
Chamou a polícia e aqui estou.
Muito contente, senhor delegado.
Fiz o que podia fazer. Eu não sou daquelas pessoas que escondem dinheiro na cueca, em primeiro lugar
porque não tenho contato com certos políticos e porque não uso cueca,
só calcinha, que não serve para essas
coisas. Depois, engoli algo que vale a
pena. Não foi um panetone vagabundo, desses que os políticos distribuem no Natal. Foi uma corrente de
ouro. Que está dentro de mim, quietinha e feliz.
Por pouco tempo, acha o senhor. E
é aí que o senhor se engana, senhor
delegado. Porque sofro de prisão de
ventre: posso passar dias sem evacuar. Isto, que sempre foi um transtorno, agora revela-se um benefício,
permitindo que eu fique mais tempo
com a minha corrente. Se e quando
ela sair, não será mais a mesma corrente. Algo dela, uma pequena partícula que seja, terá se desprendido e
terá sido incorporada a meu organismo. Eu e a corrente seremos uma
coisa só, senhor delegado. A corrente da vida levou-me à vitória, deu-me uma recompensa que ninguém
jamais me arrebatará."
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
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