São Paulo, segunda-feira, 07 de dezembro de 2009

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MOACYR SCLIAR

A corrente da vida


Engoli algo que vale a pena. Não foi um panetone vagabundo, desses que os políticos distribuem no Natal


Mulher é presa após engolir corrente de ouro em joalheria. Uma dona-de-casa de 52 anos foi presa após engolir uma corrente de ouro numa joalheria do centro do Rio. Ela foi indiciada por tentativa de furto. Uma radiografia confirmou que a corrente está em seu estômago. Quando expelir a peça, a mulher será encaminhada à cadeia. Segundo a polícia, Fátima Carceiro foi a uma joalheria e pediu para ver joias. Enquanto tirava peças da vitrine, o vendedor percebeu o sumiço de uma corrente. Ele desconfiou e chamou a polícia. Fátima admitiu o furto. Cotidiano

"SENHOR" delegado, antes de mais nada, e ao contrário de outras pessoas acusadas que clamam inocência, quero lhe dizer que admito minha transgressão. Mais: sempre soube que acabaria presa. É um destino que está no meu nome. Quem se chama Carceiro, senhor delegado, dificilmente escapará ao cárcere, não é mesmo?
Isto posto, quero dizer que não estou arrependida. Ao contrário, sinto-me perfeitamente tranquila. Fiz o que queria fazer. Há muito tempo eu cobiçava esta corrente de ouro, senhor delegado. Era a joia da minha vida, feita por um artista joalheiro especialmente para mim. Prova disso é que ficou exposta um tempão e ninguém a levou. A corrente de ouro estava à minha espera.
Mas havia um problema: eu não tinha dinheiro para comprá-la. Essa desigual distribuição de renda, o senhor sabe... Uma coisa que precisa ser corrigida, e decidi tomar a iniciativa neste sentido. Resolvi apossar-me da corrente. Não foi difícil: entrei na joalheria, pedi para ver pulseiras, anéis, colares. E a corrente. Enquanto o vendedor tirava uma joia da vitrine eu, mais que depressa, engoli a corrente. Engoli sem água, em seco, e olhe que uma corrente não é um comprimido qualquer. Mas é que a corrente queria ser engolida, sabe? Queria, por assim dizer, pular para dentro de mim.
Agora: tive um pequeno azar. Eu esperava que o vendedor, tendo colocado tanta coisa sobre o balcão, não desse falta da corrente. Mas era um obsessivo esse vendedor. Sabia de cada joia da loja, e assim imediatamente perguntou pela corrente. Chamou a polícia e aqui estou. Muito contente, senhor delegado. Fiz o que podia fazer. Eu não sou daquelas pessoas que escondem dinheiro na cueca, em primeiro lugar porque não tenho contato com certos políticos e porque não uso cueca, só calcinha, que não serve para essas coisas. Depois, engoli algo que vale a pena. Não foi um panetone vagabundo, desses que os políticos distribuem no Natal. Foi uma corrente de ouro. Que está dentro de mim, quietinha e feliz.
Por pouco tempo, acha o senhor. E é aí que o senhor se engana, senhor delegado. Porque sofro de prisão de ventre: posso passar dias sem evacuar. Isto, que sempre foi um transtorno, agora revela-se um benefício, permitindo que eu fique mais tempo com a minha corrente. Se e quando ela sair, não será mais a mesma corrente. Algo dela, uma pequena partícula que seja, terá se desprendido e terá sido incorporada a meu organismo. Eu e a corrente seremos uma coisa só, senhor delegado. A corrente da vida levou-me à vitória, deu-me uma recompensa que ninguém jamais me arrebatará."


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha. moacyr.scliar@uol.com.br


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