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RUBEM ALVES
Eutanásia
Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música
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SEMPRE QUE SE FALA EM EUTANÁSIA ,os seus opositores invocam
razões éticas e teológicas. Dizem que a vida é dada por Deus
e que, portanto, somente Deus tem o
direito de tirá-la. Eutanásia é matar
uma pessoa e há um mandamento
que proíbe isso. Assim, em nome de
princípios universais, permite-se
que uma pessoa morra em meio ao
maior sofrimento.
Pois eu afirmo: sou a favor da eutanásia por motivos éticos. Albert Camus, numa frase bem curta, disse
que, se ele fosse escrever um livro
sobre ética, 99 páginas estariam em
branco e na última página estaria escrito "amor". Todos os princípios
éticos que possam ser inventados
por teólogos e filósofos caem por
terra diante dessa pequena palavra:
"amar". Deus é amor.
O amor, segundo os textos sagrados, é fazer aos outros aquilo que desejaríamos que fosse feito conosco,
numa situação semelhante. Amo os
cães e já tive dezenas. Muitos deles
eu mesmo levei ao veterinário para
que lhes fosse dado o alívio para o
seu sofrimento. Fiz isso porque os
amava, eram meus amigos, queria o
bem deles. E eu gostaria que fizessem o mesmo comigo, se estivesse
na situação de sofrimento deles.
Defender a vida a todo custo! De
acordo. É a filosofia de Albert
Schweitzer e a filosofia de Mahatma
Gandhi: reverência pela vida. Tudo o
que vive é sagrado e deve ser protegido. Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas
e ondas cerebrais. Mas será isso que
é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da
vida. Vejo as crianças brincando:
elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando:
eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para
que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso, todos
os esforços devem ser feitos.
Mas eu pergunto: a vida não será
como a música? Uma música sem
fim seria insuportável. Toda música
quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente
num galho: tão linda, tão vermelha.
Mas o tempo chega quando ela quer
morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite, ela está cansada.
Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse
quando o seu corpo quer dormir.
A vida não pode ser medida por
batidas e coração ou ondas elétricas.
Como um instrumento musical, a
vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um
simples sorriso. Admitamos, para
efeito de argumentação, que a vida é
dada por Deus e que somente Deus
tem o direito de tirá-la. Qualquer intervenção mecânica ou química que
tenha por objetivo fazer com que a
vida dê o seu acorde final seria pecado, assassinato.
Vamos levar o argumento à suas
últimas conseqüências: se Deus é o
senhor da vida e também o senhor
da morte, qualquer coisa que se faça
para impedir a morte, que aconteceria inevitavelmente, se o corpo fosse
entregue à vontade de Deus, sem os
artifícios humanos para prolongá-la, seriam também uma transgressão da vontade divina. Tirar a vida
artificialmente seria tão pecaminoso quanto impedir a morte artificialmente, porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural
das coisas determinada por Deus.
A vida, esgotada a alegria, deseja
morrer. O que eu desejo para mim é
que as pessoas que me amam me
amem do jeito como eu amo os
meus cachorros.
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