São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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Delegado é ligado a 2 empresas e controla 3.773 seguranças

MARIO CESAR CARVALHO
da Reportagem Local

Miguel Gonçalves Pacheco e Oliveira acorda em seu apartamento de R$ 700 mil nos Jardins, pega seu Volvo 9600 VCB preto de R$ 40 mil e vai para a empresa de sua família, instalada em sede de sete andares. O prédio, avaliado em R$ 750 mil, está em seu nome.
Seria a rotina de um empresário bem-sucedido não fosse um detalhe: Oliveira é delegado de polícia, pago para cuidar da segurança pública, mas enriqueceu com a falta dela. Está ligado a duas empresas de segurança privada, a Vanguarda e a Nacional.
Oliveira não está sozinho -é só o maior dos empresários-policiais. Levantamento de três meses feito pela Folha revela que 11 delegados de polícia e 4 PMs de São Paulo têm empresas de segurança em seus nomes ou de parentes.
A Folha levantou a documentação das empresas e os bens de seus sócios em 39 cartórios -28 em São Paulo e 11 em cidades do interior como Morungaba, Cajamar e até Palmeira d'Oeste, a cerca de 650 km da capital (veja quadro à pág. 3-2). Foram reunidos 3,6 quilos de documentos.
Há pelos menos duas dúvidas quando policiais decidem explorar um negócio que se alimenta da deterioração da segurança: uma ética e outra legal.
A dúvida ética é óbvia: é lícito que profissionais pagos pelo Estado para cuidar da segurança pública lucrem com a falta dela?
"Isso é imoral", diz o deputado federal Tuga Angerami (PSDB- SP), autor de um projeto de lei que pune com prisão policiais envolvidos com empresas de segurança.
A questão legal é controversa: o estatuto do funcionalismo proíbe o funcionário público de "exercer, mesmo nas horas de folga, qualquer outro emprego ou função", exceto dar aulas. Mas há uma brecha: ele pode ter ações ou cotas de uma empresa desde que não participe da gerência.
É nessa fresta legal, que separa o sócio que não põe a mão na massa daquele que toca o negócio, que os policiais atuam. Todos os pesquisados dizem que estão ajudando um negócio da família, que não gerenciam a empresa.
Não é bem assim. A Folha ligou para seis empresas que não estão em nome dos policiais e em cinco delas a telefonista informava que o delegado era diretor ou dono do negócio. Todos os telefonemas foram gravados.

Lucro da insegurança
O Volvo preto e o apartamento de R$ 700 mil do primeiro parágrafo não estão lá por acaso. Eles simbolizam um traço comum aos policiais que exploram negócios de segurança privada: todos têm bens que não conseguiriam acumular com o salário.
Paulo Sergio Oppido Fleury, delegado de 2ª classe, cargo cujo salário máximo é de R$ 4.827,35, teria de trabalhar sete anos sem gastar um centavo para comprar a casa avaliada em R$ 450 mil em que vive em Alphaville, condomínio da Grande São Paulo.
Joffre Belfort de Andrade Sandin, delegado da corregedoria, órgão encarregado de investigar irregularidades na Polícia Civil, tem uma casa avaliada em R$ 350 mil no Morumbi, um dos bairros mais valorizados de São Paulo. O salário máximo de delegados de sua classe, a especial, é de R$ 5.661,69.
Sandin é sócio da Belfort junto com a mulher. É o mais graduado entre os empresários-policiais. Já foi delegado-seccional de Santo Amaro -era o responsável pelo conjunto de delegacias que atende a região mais violenta de São Paulo. Quando abriu o negócio de segurança, em abril de 1990, Sandin era o delegado do Parque Santo Antônio, um dos campeões em homicídios em São Paulo.
Não é só em regiões miseráveis e violentas que delegados descobrem esse tipo de negócio. No extremo oposto, nas regiões ricas, isso também ocorre.
Ivaney Cayres de Souza, que foi delegado do 78º DP (Jardins), teve uma empresa em seu nome, a Pollus, entre 90 e 97. Semana passada, a telefonista informava que ele continuava dono do negócio.
Em 1996, a empresa faturou R$ 12,6 milhões. Hoje, ela tem cerca de 1.200 vigilantes. Em novembro do ano passado, ele transferiu a empresa para dois sócios.
Oliveira, o delegado do Volvo preto, diz que seria equivocado atribuir seu patrimônio aos rendimentos de delegado.
"Não nego que tenho empresa. Não dá para vincular o meu patrimônio com meu salário de polícia", diz. "Estou no ramo de segurança desde 1979, antes de ser delegado." Ele tornou-se delegado em 1984. Antes, era da PF (Polícia Federal), categoria proibida de ter negócios.
Oliveira não diz quanto ganha, mas um delegado de 2ª classe recebe R$ 4.827,35. Com duas empresas em nome das irmãs, ele controla 3.773 vigilantes -514 a mais do que a Polícia Militar tem na zona sul, a região mais violenta de São Paulo.

Privatização da polícia
Lucro, sabe-se desde Calvino (1509-1565), não é pecado. O desvio dos policiais que têm interesses em empresas de segurança seria desvirtuar as funções da polícia, segundo o coronel José Vicente da Silva Filho, que assessorou a Secretaria de Segurança de São Paulo no governo de Mário Covas até o ano passado.
"Todo mundo sabe que essas empresas usam carros e homens da polícia. É uma situação vexatória para quem está tentando colocar ordem na polícia", diz Silva Filho.
José Boaventura, presidente da Confederação Nacional dos Vigilantes, diz que o uso de carros e homens da polícia pelas empresas de segurança é uma prática disseminada pelo país.
"É um tipo de privatização da polícia. Todos pagam pelo serviço do policial, mas só alguns se beneficiam", diz Boaventura.
O delegado Délcio Silmar Sampaio, um dos sócios da Security, que presta serviços para o Grupo Folha, confirma que o expediente é usado pelas empresas.
"Tem empresas que usam viaturas da polícia. Nós não fazemos isso", conta.


Colaborou Iran Nonato, motoboy da Folha



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