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PASQUALE CIPRO NETO
Cremado vivo
Não sou o José Simão, mas
tenho os meus (atentíssimos) colaboradores. Um deles
(José Ernesto dos Santos, meu colega, ou seja, professor) me manda esta pérola, que leu num
anúncio publicado num jornal do
sul do país: "Adquira um plano
de cremação em vida...".
Dignificando seu ofício (José Ernesto é professor de clínica médica na USP de Ribeirão Preto), o
leitor manifesta preocupação
com a dor dos cremados vivos,
que, afinal, são nossos irmãos e
não merecem tamanho penar.
E lá vamos nós, mais uma vez,
tratar de um problema aparentemente insolúvel: a falta de cuidado com a ordem, que talvez decorra da falta de (re)leitura, que
talvez decorra da falta de...
Um belo dia, na escola, aprendemos a decorar a listinha de preposições: "a", "ante", "até",
"após", "com", "contra", "de",
"desde", "durante", "em", "entre", "perante", "por", "para",
"sem", "sob", "sobre"...
Como "decorar" nunca foi sinônimo de "aprender", quem fica
na decoreba deixa de fazer o que
realmente é importante no caso
das preposições: aprender a estabelecer com precisão e clareza as
conexões entre os elementos que
formam as orações e os períodos.
No caso do anúncio da cremação, parece evidente que a expressão "em vida" se prende à forma
verbal "adquira", regente da preposição "em". Sempre que possível, o ideal é aproximar o regente
do regido, o que, no caso do anúncio, significa colocar "em" ao lado
de "adquira": "Adquira em vida
um plano de cremação...".
A dubiedade da frase decorre de
sua (má) estruturação. Posta onde está, a expressão "em vida" pode muito bem ligar-se a "cremação" (na verdade, a uma forma
verbal subentendida, que poderia
ser "realizada", "feita" etc. : "cremação realizada/feita em vida").
Bem, não resisto à tentação de
dizer como era o anúncio todo:
"Adquira um plano de cremação
em vida e evite dúvidas sobre sua
vontade. Ligue para...". De fato,
quem adquire um plano de cremação em vida não deixa nenhuma dúvida sobre o que deseja.
Outro dos meus colaboradores é
Marcelo Menezes, que cita esta
maravilha (da Folha de S.Paulo):
"Estudo de cientista português
com DNA de jumentos de 52 países indica origens...".
Percebeu o que ocorre, caro leitor? Para variar, o problema é a
costura, a conexão. Que faz aí a
expressão "com DNA de jumentos
de 52 países"? Qual é o regente da
preposição "com"? Levado pela
percepção da intenção de quem
redigiu o texto, alguém pode dizer
que é "estudo". Aí entro eu e pergunto: faz-se o estudo "com" o
DNA ou "do"/"sobre" o DNA?
Já afirmei diversas vezes que a
ditadura do espaço leva jornalistas a criar uma língua paralela,
em que as conexões são feitas de
acordo com o tamanho do que
deve ser preenchido. No caso em
questão, a preposição mais adequada seria "sobre" ("Estudo de
cientista português sobre o DNA
de 52 jumentos..."), mas ela talvez
não coubesse no espaço destinado
(tratava-se de subtítulo).
O fato é que a preposição "com"
criou a incômoda possibilidade
de que da frase se depreenda que
o cientista português tem DNA de
jumentos de 52 países... Ai, ai, ai.
Como diz o querido amigo José
Simão (o colunista político mais
importante da nação), este é mesmo o país da piada pronta. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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