São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

Cremado vivo

Não sou o José Simão, mas tenho os meus (atentíssimos) colaboradores. Um deles (José Ernesto dos Santos, meu colega, ou seja, professor) me manda esta pérola, que leu num anúncio publicado num jornal do sul do país: "Adquira um plano de cremação em vida...".
Dignificando seu ofício (José Ernesto é professor de clínica médica na USP de Ribeirão Preto), o leitor manifesta preocupação com a dor dos cremados vivos, que, afinal, são nossos irmãos e não merecem tamanho penar.
E lá vamos nós, mais uma vez, tratar de um problema aparentemente insolúvel: a falta de cuidado com a ordem, que talvez decorra da falta de (re)leitura, que talvez decorra da falta de...
Um belo dia, na escola, aprendemos a decorar a listinha de preposições: "a", "ante", "até", "após", "com", "contra", "de", "desde", "durante", "em", "entre", "perante", "por", "para", "sem", "sob", "sobre"...
Como "decorar" nunca foi sinônimo de "aprender", quem fica na decoreba deixa de fazer o que realmente é importante no caso das preposições: aprender a estabelecer com precisão e clareza as conexões entre os elementos que formam as orações e os períodos.
No caso do anúncio da cremação, parece evidente que a expressão "em vida" se prende à forma verbal "adquira", regente da preposição "em". Sempre que possível, o ideal é aproximar o regente do regido, o que, no caso do anúncio, significa colocar "em" ao lado de "adquira": "Adquira em vida um plano de cremação...".
A dubiedade da frase decorre de sua (má) estruturação. Posta onde está, a expressão "em vida" pode muito bem ligar-se a "cremação" (na verdade, a uma forma verbal subentendida, que poderia ser "realizada", "feita" etc. : "cremação realizada/feita em vida").
Bem, não resisto à tentação de dizer como era o anúncio todo: "Adquira um plano de cremação em vida e evite dúvidas sobre sua vontade. Ligue para...". De fato, quem adquire um plano de cremação em vida não deixa nenhuma dúvida sobre o que deseja.
Outro dos meus colaboradores é Marcelo Menezes, que cita esta maravilha (da Folha de S.Paulo): "Estudo de cientista português com DNA de jumentos de 52 países indica origens...".
Percebeu o que ocorre, caro leitor? Para variar, o problema é a costura, a conexão. Que faz aí a expressão "com DNA de jumentos de 52 países"? Qual é o regente da preposição "com"? Levado pela percepção da intenção de quem redigiu o texto, alguém pode dizer que é "estudo". Aí entro eu e pergunto: faz-se o estudo "com" o DNA ou "do"/"sobre" o DNA?
Já afirmei diversas vezes que a ditadura do espaço leva jornalistas a criar uma língua paralela, em que as conexões são feitas de acordo com o tamanho do que deve ser preenchido. No caso em questão, a preposição mais adequada seria "sobre" ("Estudo de cientista português sobre o DNA de 52 jumentos..."), mas ela talvez não coubesse no espaço destinado (tratava-se de subtítulo).
O fato é que a preposição "com" criou a incômoda possibilidade de que da frase se depreenda que o cientista português tem DNA de jumentos de 52 países... Ai, ai, ai.
Como diz o querido amigo José Simão (o colunista político mais importante da nação), este é mesmo o país da piada pronta. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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