São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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Para moradores, local é "chiqueiro de porco"

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Quando comprou pela primeira vez a revista com o cupom para tentar participar do ""Show do Milhão", programa apresentado por Silvio Santos no SBT, a entregadora de quentinhas Lúcia Maria Dias, 43, teve uma dúvida: que endereço informar?
Escreveu: ""Debaixo da ponte da Linha Vermelha". ""Meu sonho era ganhar algum dinheiro para ter uma casa decente", disse ontem Lúcia, um dia depois de seu barraco ser queimado no incêndio no qual morreram uma menina de dois anos e uma de 11.
À procura de empregos melhores, o vendedor de iogurte Róbson de Oliveira, 32, preenchia formulários dizendo morar na ""Fazenda do Caju Debaixo da Linha Vermelha". ""Eu inventei o nome", conta.
Há cinco meses, em busca de um nome para a favela cuja ocupação iniciou pelo menos três anos atrás, o vigia escolar Jaílson Tavares de Araújo, 25, propôs numa reunião dos moradores o batismo inspirado num bairro nobre da zona sul, o Leblon. Foi aclamado ao sugerir Vila do Leblon.
Vizinhos diziam viver na favela Parque Boa Esperança, uma comunidade maior e mais bem estruturada (casas de alvenaria em vez de madeira), também no Caju (zona norte). Algumas autoridades usaram o mesmo nome.
Na tarde de ontem, antigos moradores da favela sob a Linha Vermelha reclamavam das denominações ""Favela da Lacraia" e ""Buraco da Lacraia", divulgadas no noticiário.
""É só para esculachar a gente", protestou a empregada doméstica Andréia Costa Irmão, 18, desempregada há três anos. E onde ela informava morar, já que a favela não tinha nome oficial? ""A gente falava que morava na favela do chiqueiro de porco."
Outros moradores confirmam. Poucas vezes uma designação foi tão apropriada. Os cerca de 200 barracos foram montados ao lado de um esgoto aberto, o valão.
Dezenas de porcos eram criados ali. Ratos e mosquitos infestavam os barracos. Foram abertas fossas só para urina. Os dejetos eram despejados em saquinhos plásticos, jogados num monte de lixo no valão, tornando ainda mais irrespirável o ar.
Os barracos foram montados quase todos no modelo do de Andréia: ela pegou a madeira nas ruas e na xepa -modo como se refere ao lixão próximo, no qual os habitantes do ""chiqueiro de porco" buscam alimentos com validade vencida jogados fora por supermercados, latinhas de alumínio e outros restos.
Ostentando uma barriga de cinco meses de uma gravidez de risco -""tenho o útero infantil"-, Andréia saiu correndo com o marido, o operário da construção civil desempregado Carlos Eduardo Ribeiro da Silva, 20, assim que ouviu os gritos de ""tá pegando fogo!", de outros moradores.
Passava pouco das 14h de anteontem, conforme seu relato. O casal estava no barraco. A conversa tinha um tema exclusivo: o enxoval do bebê. A primeira filha de Andréia, Ana Beatriz, com o primeiro marido, hoje preso, completa dois anos no mês que vem. A menina estava na creche pública quando houve o incêndio.
Em fevereiro, nasceu a primeira filha com o novo companheiro, Ana Luiza. Prematura de seis meses, sobreviveu apenas dois dias. ""Ela nasceu porque um cavalo veio por trás de mim; ninguém me avisou e tomei um susto", conta Andréia.
O bebê que espera vai se chamar Heloísa, ""que é parecido com Ana Luiza". Ana Beatriz não teve nem berço -dormia com a mãe na cama. Para Heloísa, só há as sobras da irmã mais velha.
A esperança de Andréia Costa Irmão obter a casa com espaço para a nova filha continua sendo ""João", o homem que organizou os moradores para fazer uma manifestação no Barrashopping, centro comercial da Barra da Tijuca. Enquanto o ato reivindicando moradia se desenrolava, o fogo matava duas crianças.
""João" é o codinome usado no ""chiqueiro de porco" pelo líder do MTU (Movimento dos Trabalhadores Urbanos), Wellington da Silva, que costuma se apresentar em público com o nome de guerra Eric Vermelho.
Os cerca de 300 desabrigados passaram a noite numa escola estadual e numa associação de moradores próximas. Parte dos moradores havia ido para a casa de parentes, em favelas.
A primeira refeição servida pelo Estado foi o almoço de ontem. O café da manhã foi composto de doações da vizinhança.
Na madrugada, mais de cem pessoas espremeram-se sobre colchonetes num salão de 180 metros quadrados, na associação. Bebês choravam. O mais jovem é Felipe, 16 dias.
Sobre uma mesa, foi jogada a faixa da manifestação no shopping: ""Com desemprego e exclusão não há independência".
A Secretaria de Ação Social cadastrou 112 famílias, que na terça-feira começam a ser removidas para casas de alvenaria.
O subsecretário Ricardo Bittar afirmou que pessoas que não moravam na favela tentam pegar carona na lista.
Enquanto espera, Lúcia Maria Dias, que nunca foi sorteada para participar do ""Show do Milhão", relata um consolo e um lamento. O consolo: ""Consegui salvar o meu filho, Douglas, de 13 anos, que estava dormindo". E o lamento: ""Eu sonhava com uma casa. Agora, no meio disso aqui, na associação, tenho é saudade do meu barraco".


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