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Para moradores, local é "chiqueiro de porco"
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
Quando comprou pela primeira
vez a revista com o cupom para
tentar participar do ""Show do Milhão", programa apresentado por
Silvio Santos no SBT, a entregadora de quentinhas Lúcia Maria
Dias, 43, teve uma dúvida: que endereço informar?
Escreveu: ""Debaixo da ponte da
Linha Vermelha". ""Meu sonho
era ganhar algum dinheiro para
ter uma casa decente", disse ontem Lúcia, um dia depois de seu
barraco ser queimado no incêndio no qual morreram uma menina de dois anos e uma de 11.
À procura de empregos melhores, o vendedor de iogurte Róbson de Oliveira, 32, preenchia formulários dizendo morar na ""Fazenda do Caju Debaixo da Linha
Vermelha". ""Eu inventei o nome", conta.
Há cinco meses, em busca de
um nome para a favela cuja ocupação iniciou pelo menos três
anos atrás, o vigia escolar Jaílson
Tavares de Araújo, 25, propôs numa reunião dos moradores o batismo inspirado num bairro nobre da zona sul, o Leblon. Foi aclamado ao sugerir Vila do Leblon.
Vizinhos diziam viver na favela
Parque Boa Esperança, uma comunidade maior e mais bem estruturada (casas de alvenaria em
vez de madeira), também no Caju
(zona norte). Algumas autoridades usaram o mesmo nome.
Na tarde de ontem, antigos moradores da favela sob a Linha Vermelha reclamavam das denominações ""Favela da Lacraia" e ""Buraco da Lacraia", divulgadas no
noticiário.
""É só para esculachar a gente",
protestou a empregada doméstica
Andréia Costa Irmão, 18, desempregada há três anos. E onde ela
informava morar, já que a favela
não tinha nome oficial? ""A gente
falava que morava na favela do
chiqueiro de porco."
Outros moradores confirmam.
Poucas vezes uma designação foi
tão apropriada. Os cerca de 200
barracos foram montados ao lado
de um esgoto aberto, o valão.
Dezenas de porcos eram criados
ali. Ratos e mosquitos infestavam
os barracos. Foram abertas fossas
só para urina. Os dejetos eram
despejados em saquinhos plásticos, jogados num monte de lixo
no valão, tornando ainda mais irrespirável o ar.
Os barracos foram montados
quase todos no modelo do de Andréia: ela pegou a madeira nas
ruas e na xepa -modo como se
refere ao lixão próximo, no qual
os habitantes do ""chiqueiro de
porco" buscam alimentos com
validade vencida jogados fora por
supermercados, latinhas de alumínio e outros restos.
Ostentando uma barriga de cinco meses de uma gravidez de risco
-""tenho o útero infantil"-, Andréia saiu correndo com o marido, o operário da construção civil
desempregado Carlos Eduardo
Ribeiro da Silva, 20, assim que ouviu os gritos de ""tá pegando fogo!", de outros moradores.
Passava pouco das 14h de anteontem, conforme seu relato. O
casal estava no barraco. A conversa tinha um tema exclusivo: o enxoval do bebê. A primeira filha de
Andréia, Ana Beatriz, com o primeiro marido, hoje preso, completa dois anos no mês que vem. A
menina estava na creche pública
quando houve o incêndio.
Em fevereiro, nasceu a primeira
filha com o novo companheiro,
Ana Luiza. Prematura de seis meses, sobreviveu apenas dois dias.
""Ela nasceu porque um cavalo
veio por trás de mim; ninguém
me avisou e tomei um susto",
conta Andréia.
O bebê que espera vai se chamar
Heloísa, ""que é parecido com Ana
Luiza". Ana Beatriz não teve nem
berço -dormia com a mãe na cama. Para Heloísa, só há as sobras
da irmã mais velha.
A esperança de Andréia Costa
Irmão obter a casa com espaço
para a nova filha continua sendo
""João", o homem que organizou
os moradores para fazer uma manifestação no Barrashopping,
centro comercial da Barra da Tijuca. Enquanto o ato reivindicando moradia se desenrolava, o fogo
matava duas crianças.
""João" é o codinome usado no
""chiqueiro de porco" pelo líder do
MTU (Movimento dos Trabalhadores Urbanos), Wellington da
Silva, que costuma se apresentar
em público com o nome de guerra
Eric Vermelho.
Os cerca de 300 desabrigados
passaram a noite numa escola estadual e numa associação de moradores próximas. Parte dos moradores havia ido para a casa de
parentes, em favelas.
A primeira refeição servida pelo
Estado foi o almoço de ontem. O
café da manhã foi composto de
doações da vizinhança.
Na madrugada, mais de cem
pessoas espremeram-se sobre
colchonetes num salão de 180 metros quadrados, na associação.
Bebês choravam. O mais jovem é
Felipe, 16 dias.
Sobre uma mesa, foi jogada a
faixa da manifestação no shopping: ""Com desemprego e exclusão não há independência".
A Secretaria de Ação Social cadastrou 112 famílias, que na terça-feira começam a ser removidas
para casas de alvenaria.
O subsecretário Ricardo Bittar
afirmou que pessoas que não moravam na favela tentam pegar carona na lista.
Enquanto espera, Lúcia Maria
Dias, que nunca foi sorteada para
participar do ""Show do Milhão",
relata um consolo e um lamento.
O consolo: ""Consegui salvar o
meu filho, Douglas, de 13 anos,
que estava dormindo". E o lamento: ""Eu sonhava com uma casa.
Agora, no meio disso aqui, na associação, tenho é saudade do meu
barraco".
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