São Paulo, sexta-feira, 08 de outubro de 2010

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BARBARA GANCIA

Usque tandem, Brasil?


Logo na segunda-feira, a alegria da eleição cedeu lugar a um anticlímax do subterrâneo do esgoto

SE O COMPARECIMENTO às urnas não fosse obrigatório, eu daria as caras do mesmo jeito, sinto uma alegria imensa em participar de eleições.
Desta vez não foi diferente, a bocó assumida aqui deixou a cabine de votação emocionada e certa de ter cumprido da melhor maneira a tarefa enxadrística a que se propôs.
Tínhamos à disposição três candidatos presidenciais de dar inveja a qualquer democracia mais madura do que a nossa, um par de candidatos a governador e outro a senador que não nos desonram e dezenas de postulantes ao Congresso e à Assembleia que podem dar excelentes contribuições ao país.
Depois de muito estudar o tabuleiro, votei orgulhosa e passei o resto do domingo comovida da silva por ver tudo funcionando de forma tão plácida e lubrificada.
Mas, logo na segunda-feira, a alegria da eleição cedeu lugar a um anticlímax do subterrâneo do esgoto. Ninguém teria um "ai" a dizer se Dilma deixasse de ganhar no primeiro turno porque o pessoal se recusou a entrar na onda do plebiscito do Lula ou porque Marina conseguiu crescer ao explorar melhor a internet como "ferramenta".
Mas o primeiro turno parece ter sido decidido por gente que não quer na Presidência quem seja favorável à descriminalização do aborto. Diga lá: não dá vontade de passar a mão no primeiro bote inflável que estiver no meio do caminho e remar até a costa africana?
Há quantos anos discute-se o aborto no país? Não é possível que ainda estejamos estacionados no patamar do estigma religioso. Vai levar quanto tempo, quanto sofrimento e quantos filhos indesejados que entram para a criminalidade antes que a conversa vire assunto de interesse da saúde pública?
Não seria uma única ocorrência obscurantista na eleição a me despir da fé nesta democracia linda que não elegeu Agnaldo Timóteo, Maguila, Ronaldo Esper, Marcelinho Carioca, Dinei, Vampeta, Ana Paula Junqueira, o Kiko do KLB e Walter Feldman.
E mesmo os 134.646.180 milhões de eleitores tapuias que não votaram em Tiririca não devem desanimar. Ao menos, o palhaço, que sempre atuou na TV ajudado pelo ponto eletrônico, não conseguiu quase meio milhão de votos depois de fazer túnel superfaturado nem é procurado pela Interpol.
Ainda estava refletindo sobre o amadurecimento do país na quarta-feira ao meio-dia quando recebi um telefonema dizendo que a casa de minha mãe tinha sido roubada pela segunda vez.
Cinco fortões com armas de todos os calibres entraram e renderam a ela e à empregada. Quando cheguei lá às 14h40, praticamente tive de usar material de alpinista para ultrapassar as montanhas de roupas, documentos e objetos jogados por todos os lados.
Embora não demonstre nem se deixe abater, minha mãe tem quase a idade de Enoque, pai de Matusalém. Disse-me que um dos ladrões fazia questão de repetir: "Eu sou ladrão", com orgulho da "profissão".
Quando o regime militar cedeu o poder aos civis, achávamos que a democracia daria jeito, que bastava implantar o estado de direito para que tudo se acertasse.
Hoje, passada uma geração dessa transição, já deu para perceber que fazer o Brasil entrar nos eixos vai levar muito mais tempo, empenho e otimismo do que o previsto.

barbara@uol.com.br

@barbaragancia

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