São Paulo, quinta-feira, 09 de março de 2006

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Sociedade pressiona Exército a ter papel de polícia, diz pesquisadora

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

O papel de polícia, que parte da sociedade carioca deseja ver assumido pelo Exército no momento em que ele ocupa oito morros do Rio, não é adequado nem agrada à elite militar.
Essa é a opinião da cientista política e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica da Fundação Getúlio Vargas Maria Celina D'Araújo, autora de vários estudos e livros sobre a atuação dos militares na ditadura e nos períodos de democracia.
Para ela, o Exército assumiu um risco ao dar essa demonstração de força porque se lançou numa empreitada que, até o momento, não tem definição clara de quanto tempo vai durar.
A cientista política diz que, após a Constituição de 1988, as Forças Armadas se adequaram a seu novo papel na sociedade, em que ficam subordinadas ao poder civil democrático. Curiosamente uma parte da sociedade e até dos governos pressionam hoje em dia os militares a "abusar de seu poder" e assumir uma função que, dentro do texto constitucional, cabe atualmente à polícia. Veja trechos de sua entrevista à Folha:

 

Folha - Que conseqüências pode ter essa ocupação do Exército em favelas cariocas?
Maria Celina D'Araújo -
Pelo que sei, os militares estão nos morros em função de um mandado judicial de busca e apreensão. É uma demonstração de força aos ladrões. Não sei por quanto tempo eles poderão ficar nas ruas e qual a abrangência desse mandado, mas fazer isso é uma responsabilidade muito grande. Todas as vezes em que eles saíram, acabaram respondendo por abusos de poder. É um risco alto.

Folha - Parte da sociedade carioca pressiona o Exército a ficar mais tempo no combate ao tráfico. A senhora concorda com essa pressão?
D'Araújo -
A questão da violência não se resolve com armamento ostensivo, mas com políticas de prevenção e de cumprimento da lei. A gente precisa ficar muito atento porque cada instituição tem seu papel numa sociedade democrática. Um jornalista não pode fazer uma sentença, porque isso cabe a um juiz. Da mesma forma, as Forças Armadas também têm sua função, e a gente precisa respeitar a lei.

Folha - Os militares estão querendo abusar de seu poder?
D'Araújo -
Não acho que eles queiram abusar desse poder. Eu acho que é a sociedade que tenta obrigá-los a fazer isso, além de uma parcela dos políticos e dos governos. Mas isso [exercer o papel que cabe à polícia] não é missão militar.
A subordinação dos militares ao poder civil faz parte de um processo de democratização do Brasil. Esse avanço, no entanto, aconteceu num momento delicado, em que houve a expansão do crime organizado em todo o mundo.
Se, por um lado, a sociedade quer manter as Forças Armadas como um braço do Estado democrático, por outro, querem também mais segurança por causa da ação desafiadora do tráfico de drogas. Essa demanda por segurança tem levado várias pessoas a acharem que a saída está na força dos militares. Há ainda uma pressão forte dos Estados Unidos para que os exércitos latino-americanos atuem no combate direto ao narcotráfico. No entanto, a elite militar não deseja esse papel de atuar como polícia.

Folha - Por que eles resistem a assumir essa função?
D'Araújo -
Os militares sabem a partir da experiência de outros países que há sempre o risco de contágio quando eles passam a combater o narcotráfico. Isso já aconteceu na Bolívia e no Paraguai. As Forças Armadas são compostas por pessoas normais, e o contato com o narcotráfico tem um lado sedutor já que envolve muito dinheiro. A contaminação é sempre uma possibilidade.
Além disso, eles sabem que isso é um desvio de função. Há funções que são específicas dos militares. Eles lidam com armamento pesado e têm treinamento de guerra, para defesa do Estado contra ameaças externas. Em outras palavras, os exércitos são máquinas de matar. A questão da violência urbana, no entanto, não se resolve com armamento.

Folha - Mas, se não há ameaças externas, por que não treinar os militares para outras funções?
D'Araújo -
Esse é um argumento muito sedutor, mas que não resiste a uma reflexão maior. Eu costumo dizer que Exército é como plano de saúde. Você tem que pagar, mas torce para não usar. Não é à toa que praticamente todos os países do mundo mantêm um Exército treinado.


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