São Paulo, quinta-feira, 09 de junho de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

Obstar, obstacular, obstaculizar, obstacularizar

A coisa anda feia na corte, muito feia. Entre mensalões e que tais, a lama se espalha e se impregna ubiquamente. E, na TV, um parlamentar (que não consegui identificar -confesso que não presto mais atenção nas figuras e no que elas [des]dizem) jura que sabe Deus quem vai (ou não vai, pouco importa) "obstacular" sei lá o quê. Pois é, caro leitor, você deve estar se perguntando se "obstacular" é termo vernáculo. A julgar pelo "Aurélio" e pelo "Houaiss", não é; a julgar pelo "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", publicado pela Academia Brasileira de Letras, é. É sempre bom lembrar que, teoricamente, os dicionários e o "Vocabulário" se apóiam num determinado "corpus" (textos literários, jornalísticos, científicos etc.), no qual deve se encontrar um número significativo de ocorrências do termo que registram. Em outras palavras, não basta que se encontre determinado termo uma vez aqui e outra ali para que se justifique seu registro num dicionário ou no "Vocabulário". O caso lembra o do ex-ministro Rogério Magri, que um dia disse que seu chefe era "imexível". O mundo caiu-lhe nas costas por causa do neologismo, criado a partir dos cânones da língua ("imexível" obedece ao mesmo processo de formação de centenas de palavras congêneres, como "intocável", "inegociável", "ilegível" etc.). O que faltava (e ainda falta) a "imexível"? O uso (sobretudo nas variedades formais da língua) e, conseqüentemente, o registro desse uso. O processo de formação de "obstacular" também segue os cânones da língua (veja-se o que ocorre com "modular", por exemplo, que tem com "módulo" a mesma relação que "obstacular" tem com "obstáculo"). O "senão" de "obstacular" é o uso escasso e a quase-ausência de registros formais. É bom lembrar que o "Aurélio" e o "Houaiss" registram "obstaculizar", dado como típico do português do Brasil. O "Vocabulário" vai além: registra "obstacular", "obstaculizar" e "obstacularizar". Posto isso, convém analisar um ponto interessante da questão: a base de todos esses neologismos ou regionalismos ("obstacular", "obstaculizar" e "obstacularizar") é "obstar", membro da família do verbo "estar" ("obstar" vem do latim "obstare", em que se encontra o prefixo latino "ob-", que significa "diante de"). Como se vê, "obstar" significa "estar diante de", o que, em última análise, significa "impedir", ou seja, "servir de obstáculo" ("obstáculo", obviamente, é o que obsta, ou seja, o que obstácula, ou seja, o que obstaculiza, ou seja, o que obstaculariza -ufa!). Nesse caso (e em outros, como o de "disponibilizar", "inicializar" e quejandos), parece ocorrer o oposto do que se costuma ter como fato consumado em língua: o processo de economia, de redução, de que são exemplos -entre outros- diversos casos de haplologia ("contração ou redução de elementos similares de um vocábulo", na definição do "Aurélio"), o que ocorre em palavras como "idoso" (redução de "idadoso" -idade + -oso), "bondoso" (redução de "bondadoso" -bondade + -oso), "saudoso" (de "saudadoso" -saudade + -oso) etc. Talvez por desconhecimento da existência do verbo "obstar" ou pelo fato de que seu uso é restrito às variedades formais da língua, os falantes têm feito o coitadinho espichar cada vez mais. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
@ - inculta@uol.com.br


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