São Paulo, quinta-feira, 09 de agosto de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Vai chover elogios"

Usado em sentido figurado, o verbo "chover" concorda com o que chove, isto é, com o que cai ou ocorre em abundância

NO BELÍSSIMO "Poema Só para Jayme Ovalle", Manuel Bandeira escreveu estes versos: "Quando hoje acordei, ainda fazia escuro / (Embora a manhã já estivesse avançada). / Chovia. / Chovia uma triste chuva de resignação / Como contraste e consolo...".
O brasileiro Jayme Ovalle foi um grande músico e compositor. É dele, por exemplo, a melodia de "Azulão" ("Vai, Azulão, / Azulão, companheiro, vai"), cujo poema é de Bandeira.
No poema dedicado a Ovalle, Bandeira usa o verbo "chover" duas vezes ("Chovia. / Chovia uma triste chuva de resignação..."). Note o leitor, por gentileza, que, em sua primeira ocorrência, "chovia" é palavra-verso, ou seja, constitui sozinha um verso. Isso parece deixar claro que a chuva era protagonista na composição do ambiente do poeta.
Estivéssemos numa conversa sobre sintaxe, todos nos lembraríamos do que aprendemos na escola: verbos que indicam fenômenos da natureza ("chover", "nevar" etc.) são impessoais (não têm sujeito e só são conjugados na terceira do singular).
E a segunda ocorrência de "chover" ("Chovia uma triste chuva...")?
Pode-se dizer que esse "chovia" tem o mesmo valor do anterior? Não, do contrário o que faria aí a passagem "uma triste chuva de resignação"?
"Chover" agora tem o sentido (figurado) de "cair do alto como chuva" ("Houaiss"), "cair do alto em abundância" ("Aurélio"): "Choveram pétalas sobre suas cabeças" ("Aurélio"); "Choveram cinzas sobre Pompéia"; "Em 1940, as bombas choviam sobre Londres" ("Houaiss").
Em outros casos, o verbo "chover" pode ter o sentido de "ocorrer em abundância", "sobrevir": "Após os apelos da TV, os donativos choveram" ("Houaiss"); "Choveram pontapés e cotoveladas durante o jogo". Como se vê pelos exemplos, quando é usado em sentido figurado, o verbo "chover" tem sujeito e concorda com ele. O sujeito, no caso, é aquilo que chove, ou seja, o que cai, ocorre em abundância, sobrevém.
Posto isso, parece-me pertinente citar esta frase, que encerra uma peça publicitária (de um automóvel): "Vai chover elogios". A frase está na TV e no site da fábrica. Será que vai chover elogios, caro leitor?
Ou será que vão chover elogios?
Levando-se em conta os princípios do padrão formal da língua, vão chover elogios. Temos aí o verbo "chover" usado em sentido figurado. Nesse caso, como já vimos... Não é necessário repetir, é?
Antes que alguém pergunte se a presença do verbo "ir" muda alguma coisa, é bom dizer que em "vai chover" temos uma locução verbal formada pelos verbos "ir" e "chover", em que "ir" é auxiliar e "chover", principal. Nesses casos, o verbo auxiliar é flexionado de acordo com a "cabeça" do verbo principal.
Para simplificar as coisas, basta pensar no que ocorreria se o verbo principal fosse usado sozinho. Teríamos, por exemplo, "Choverá elogios" ou "Choverão elogios"? Você já sabe: "Choverão elogios".
Então "vão chover elogios".
Pode-se pensar que a opção por "vai chover" se deu para que a linguagem da peça se aproximasse da informal, em que o verbo raramente concorda com o sujeito posposto. O problema é que na peça não predomina a linguagem informal.
Além do mais, a frase "Vão chover elogios" parece mais "elogiosa" do que a escolhida, não? É isso.


inculta@uol.com.br

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