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MOACYR SCLIAR
Os perigos do fetiche
Fizeram sexo, e depois
ele abraçou-se aos pés dela. De repente deu-lhe vontade de falar e ele falou
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O sapato de plataforma tem câmera e
grava voz. Para que? Para quem, seria a
pergunta. "Profissionais do sexo", diz a
artista Norene Leddy, inventora do calçado. O produto deve ser produzido em
larga escala na Europa. O Brasil também é alvo. A profissão mais antiga do
mundo virou high-tech. Informática, 4 de outubro
ELE ERA um político corrupto
e era um fetichista, fixado em
sapatos de mulheres. Situações bastante comuns; poderia passar o resto da vida tranqüilo, entregue à corrupção e à adoração de sapatos. Mas a combinação das duas
coisas revelou-se uma desgraça.
Tudo começou quando a amante
foi viajar. Nem mesmo a esposa estava na cidade, o que era muito chato: ele estava sentindo muita falta
de mulher. Afinal era um homem
ainda jovem, vigoroso, não tinha
por que ficar sem fêmea. Lembrou-se então que um amigo tinha lhe dado o número de uma call-girl, que,
segundo todas as referências, era
espetacular na cama. Sem hesitar,
ligou. "Estou indo para aí", disse a
voz do outro lado, e de fato logo depois soava a campainha. Ele abriu a
porta e ali estava a prostituta, uma
mulher bonita, alta e morena, de
olhos verdes. Mais: para alegria dele
usava vistosos sapatos com salto
em plataforma. Sapatos capazes de
realizar os mais delirantes sonhos
de qualquer fetichista.
Foram para a cama. Depois de hesitar um pouco (não gostava muito
de se revelar como fetichista), pediu
à moça que, por favor, não tirasse os
sapatos. Para surpresa dele, agradável surpresa, ela não manifestou estranheza, como muitas tinham feito até então; ao contrário, disse que
gostava de ter relações sexuais
usando sapatos, que aquilo lhe dava
um prazer especial.
Fizeram sexo, e depois ele abraçou-se aos pés dela, esfregando o
rosto nos sapatos. De repente deu-lhe vontade de falar e ele falou. Disse quem era, contou sua carreira
política e, por último, descreveu as
falcatruas em que estava metido e
que não eram poucas: as propinas
que recebera, as negociatas que tinha patrocinado. Mencionou nomes, cifras, datas. Não sei porque
estou contando isso, disse à certa
altura.
"Acho que seus sapatos me inspiram", concluiu, rindo.
Ela olhou o relógio e disse que estava na hora de ir embora. Vestiu-se
rapidamente; parecia tão apressada
que até esqueceu de cobrar pelos
serviços. Ele é quem teve de perguntar quanto devia.
A modesta soma que ela pediu deveria ter-lhe chamado a atenção.
Porque, dois dias depois, estava tudo no jornal, todas as coisas que ele
havia contado à mulher. Ela cedera
o material, sem dúvida por muito
bom dinheiro.
Uma coisa, contudo, o deixara intrigado: como é que a prostituta conseguira registar suas palavras? Gravando? Mas se ela estava nua, sem
nada, nem sequer a bolsa ao alcance
da mão. E então, lendo o caderno de
informática do jornal, deu-se conta.
O sapato. O sapato certamente
continha minicâmera e gravador,
por isso, aliás, era tão grande. E por
isso ela não se preocupara com os
honorários: a confissão dele valia
muito mais.
Corrupto, ele continua sendo.
Mas está em tratamento com um
psiquiatra. Quer curar-se de uma
vez de sua fetichista atração por sapatos. É coisa que pode dar
problema.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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