São Paulo, segunda-feira, 09 de outubro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Os perigos do fetiche


Fizeram sexo, e depois ele abraçou-se aos pés dela. De repente deu-lhe vontade de falar e ele falou

 O sapato de plataforma tem câmera e grava voz. Para que? Para quem, seria a pergunta. "Profissionais do sexo", diz a artista Norene Leddy, inventora do calçado. O produto deve ser produzido em larga escala na Europa. O Brasil também é alvo. A profissão mais antiga do mundo virou high-tech. Informática, 4 de outubro

ELE ERA um político corrupto e era um fetichista, fixado em sapatos de mulheres. Situações bastante comuns; poderia passar o resto da vida tranqüilo, entregue à corrupção e à adoração de sapatos. Mas a combinação das duas coisas revelou-se uma desgraça.
Tudo começou quando a amante foi viajar. Nem mesmo a esposa estava na cidade, o que era muito chato: ele estava sentindo muita falta de mulher. Afinal era um homem ainda jovem, vigoroso, não tinha por que ficar sem fêmea. Lembrou-se então que um amigo tinha lhe dado o número de uma call-girl, que, segundo todas as referências, era espetacular na cama. Sem hesitar, ligou. "Estou indo para aí", disse a voz do outro lado, e de fato logo depois soava a campainha. Ele abriu a porta e ali estava a prostituta, uma mulher bonita, alta e morena, de olhos verdes. Mais: para alegria dele usava vistosos sapatos com salto em plataforma. Sapatos capazes de realizar os mais delirantes sonhos de qualquer fetichista.
Foram para a cama. Depois de hesitar um pouco (não gostava muito de se revelar como fetichista), pediu à moça que, por favor, não tirasse os sapatos. Para surpresa dele, agradável surpresa, ela não manifestou estranheza, como muitas tinham feito até então; ao contrário, disse que gostava de ter relações sexuais usando sapatos, que aquilo lhe dava um prazer especial.
Fizeram sexo, e depois ele abraçou-se aos pés dela, esfregando o rosto nos sapatos. De repente deu-lhe vontade de falar e ele falou. Disse quem era, contou sua carreira política e, por último, descreveu as falcatruas em que estava metido e que não eram poucas: as propinas que recebera, as negociatas que tinha patrocinado. Mencionou nomes, cifras, datas. Não sei porque estou contando isso, disse à certa altura. "Acho que seus sapatos me inspiram", concluiu, rindo.
Ela olhou o relógio e disse que estava na hora de ir embora. Vestiu-se rapidamente; parecia tão apressada que até esqueceu de cobrar pelos serviços. Ele é quem teve de perguntar quanto devia. A modesta soma que ela pediu deveria ter-lhe chamado a atenção.
Porque, dois dias depois, estava tudo no jornal, todas as coisas que ele havia contado à mulher. Ela cedera o material, sem dúvida por muito bom dinheiro.
Uma coisa, contudo, o deixara intrigado: como é que a prostituta conseguira registar suas palavras? Gravando? Mas se ela estava nua, sem nada, nem sequer a bolsa ao alcance da mão. E então, lendo o caderno de informática do jornal, deu-se conta.
O sapato. O sapato certamente continha minicâmera e gravador, por isso, aliás, era tão grande. E por isso ela não se preocupara com os honorários: a confissão dele valia muito mais.
Corrupto, ele continua sendo. Mas está em tratamento com um psiquiatra. Quer curar-se de uma vez de sua fetichista atração por sapatos. É coisa que pode dar problema.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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