São Paulo, quinta-feira, 09 de dezembro de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"Se houvera quem me ensinara..."


Em se tratando dos tempos verbais, cuidado com o absolutismo. Quase sempre, relativizar é mais sensato

"VOLTEMOS À CASINHA. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu...". Conhece? Trata-se do começo do antológico capítulo LXX ("Dona Plácida") do não menos antológico romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. No início desse capítulo, o Bruxo do Cosme Velho trabalha a questão absoluto/relativo neste passo: "...o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor do que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas".
Certa vez, a Fuvest incluiu esse fragmento de Machado no tema da redação do seu vestibular. Além do excerto machadiano, havia um fragmento de Fernando Pessoa ("O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo...") e a reprodução de uma tela do pintor belga René Magritte ("Isto continua a não ser um cachimbo" -a frase é posta sob o desenho de um cachimbo). A Fuvest pediu aos candidatos que, levando em conta a mensagem dos trechos e do quadro, analisassem a questão absoluto/relativo.
Que tem isso que ver com o que abordamos na semana passada, caro leitor? Para quem não se lembra ou não leu, lá vai: no fim da última coluna, pedi ao leitor que pensasse num trecho de Camões ("Mais servira se não fora / Para tão longo amor tão curta a vida"), com ênfase para o valor das flexões do mais-que-perfeito ("servira" e "fora").
E então, caro leitor? Terão essas formas do/ no passo camoniano o valor específico do pretérito mais-que-perfeito (fato passado mais velho do que outro, expresso por forma do pretérito perfeito)? Certamente não. No excerto, "servira" está por "serviria", e "fora" está por "fosse" ("Mais serviria se não fosse / Para tão longo amor tão curta a vida").
Não se pense que o que fez Luís de Camões é letra morta ou fato linguístico em via de absoluta extinção. Até outro dia, locutores esportivos usavam "fora" por "fosse" ("Lá vai Fulano, como se fora ponteiro"). Em "O Estrangeiro", Caetano Veloso escreveu: "E eu? Menos a conhecera mais a amara?". Essa passagem corresponde a algo como "E eu? Se a conhecesse menos, mais a amaria?" (ou "E eu? Menos a conhecesse, mais a amaria?").
Há mais ou menos 15 anos, pedi a uma agência de propaganda que me cedesse uma peça publicitária de um azeite português em que se cantava uma cantiga popular lusitana ("Se houvera quem me ensinara, quem aprendia era eu").
Cedido o filme, usei-o no meu programa da TV Cultura para mostrar que nenhuma das quatro formas verbais do trecho foi empregada com o seu valor específico: "houvera" está por "houvesse"; "ensinara", por "ensinasse"; "aprendia" por "aprenderia"; "era" por "seria" ("Se houvesse quem me ensinasse, quem aprenderia seria eu").
O leitor acaba de ver dois exemplos do corriqueiro emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito ("aprendia" por "aprenderia"; "era" por "seria"), o que também se vê em "Se soubesses como eu gosto do teu cheiro, teu jeito de flor, não negavas um beijinho..." (de "Falando de Amor", de Tom Jobim). Comum na oralidade e em textos literários, essa troca não ocorre na linguagem formal, sobretudo na escrita ("Se investisse mais na medicina preventiva, o país certamente não teria tantos casos de doenças já extintas mundo afora").
Moral da história: em se tratando dos tempos verbais (e em quase tudo na vida), cuidado com o absolutismo. Quase sempre, relativizar é mais sensato e prudente. É isso.

inculta@uol.com.br


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