São Paulo, sexta-feira, 10 de abril de 2009

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Padres treinam celebração de missa em latim com DVD

Material divulgado na igreja contraria papa e classifica judeus como assassinos de Deus

Trecho de ritual litúrgico da Sexta-Feira Santa chama israelitas de "incrédulos" e "obcecados", que devem ser "arrancados das trevas"

JAMES CIMINO
DA REDAÇÃO
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

A Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney, sediada em Campos dos Goytacazes (RJ), cheia de fé e críticas à modernidade, tem sido a maior divulgadora no Brasil da missa tridentina, a missa em latim, que o papa Bento 16 permitiu que voltasse a ser celebrada em 2007.
O que nem o papa previu, entretanto, é que esse grupo, contrariamente à sua determinação expressa, teimasse em divulgar um texto religioso que é considerado pelos judeus um monumento de antissemitismo, particularmente na celebração da Sexta-Feira Santa, em que se relembram a tortura, crucifixão e morte de Jesus.
Em DVDs gravados por religiosos da Paróquia Pessoal do Senhor Bom Jesus Crucificado e do Imaculado Coração de Maria, também de Campos, aos quais a reportagem da Folha teve acesso, ouve-se a voz em off chamar os judeus de "povo deicida [assassino de Deus], o qual um dia reconhecerá que Jesus é o Messias".
Com tiragem não informada, esses DVDs são, juntamente a um livro de capa azul de 242 páginas -"Liturgia da Semana Santa"- o principal meio de propaganda do grupo. Por Sedex, o material é enviado a paróquias, a pedido de religiosos interessados em aprender a missa tal qual era celebrada antigamente -tarefa hoje mais difícil, já que a maioria dos seminários baniu-a, assim como o ensino de latim.
Na página 164, na oração "Pela Conversão dos Judeus", "Orémus et pro Iudaeis", os judeus são chamados de "incrédulos", de "povo obcecado", que deve ser "arrancado das trevas em que vive". Tal e qual rezou-se desde o século 16 e até o Concílio Vaticano 2º, de 1962-65 (veja abaixo).
"É uma missa difícil. Aqui, não basta rebolar e cantar iê-iê-iê", disse a professora Inês de Aquino Razzi, 58, referindo-se obliquamente ao padre Marcelo Rossi, da Renovação Carismática. O rito tradicional, celebrado ao som de cânticos gregorianos, é meticuloso na coreografia contida. O padre celebra a missa de costas para os fiéis. Tem uma sucessão de anáforas (o padre fala em latim e o povo responde), muitas genuflexões (pôr-se de joelhos). Há também diferentes entonações de voz (em alguns momentos o padre reza apenas para si mesmo). "A gente sente mais a presença de Deus", diz José Garbin, 28, engenheiro.
Quando o papa reabilitou a missa tradicional por uma espécie de decreto, em julho de 2007, tomou o cuidado de combinar o zelo tradicionalista com o politicamente correto. Nas Celebrações da Liturgia da Sexta-Feira Santa, retirou termos como "povo obcecado", "que vive nas trevas", com que antes se qualificavam os hebreus. Em vez disso, a "Oração pelos Judeus" passou a pedir a "que o Deus [...] ilumine seus corações, para que conheçam a Jesus Cristo".
Ainda assim, o mundo judaico não digeriu bem a reabilitação da missa em latim. Há um ano, o Vaticano foi obrigado a reafirmar que a nova formulação mantinha a atitude estabelecida pelo Concílio Vaticano 2º em relação aos judeus.
O grupo brasileiro de adeptos da missa em latim alega que o livro azul e o DVD foram produzidos antes da revisão feita pelo papa. O padre Claudiomar Silva Sousa, 31, o instrutor que aparece nos DVDs, afirma que, apesar de o trecho banido constar no material de divulgação, todos os padres que celebram a missa tridentina já o fazem de acordo com a revisão. "Quando se esgotarem os livros e os DVDs, o novo material será feito de acordo com a determinação papal."
É uma justificativa que autoridades religiosas judaicas brasileiras, como o rabino Henri Sobel, não aceitam. "Isso é um retrocesso no diálogo entre judeus e católicos. É totalmente incompatível com os ensinamentos do Concílio Vaticano 2º. Fico muito chocado e revoltado com o espírito das palavras ofensivas."


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