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PASQUALE CIPRO NETO
"Epitáfio"
O poema de José Paulo Paes é puro escárnio do nada em que se transforma a vida de "homens de negócios"
"DEVIA TER..." Devia, sem
dúvida nenhuma. Devia
(não) ter feito muita coisa, mas... Mas (não) fiz, (não) faço,
(não) fizemos, (não) fazemos.
O leitor talvez já saiba que o pano
de fundo deste intróito é a bela canção "Epitáfio", composta por Sérgio
Britto, um dos integrantes do sempre inovador grupo "Os Titãs".
Se você conhece a música, tente
relembrá-la ("Devia ter amado mais
/ Ter chorado mais / Ter visto o Sol
nascer [...] Devia ter trabalhado menos / Complicado menos / Ter visto
o Sol se pôr..."). Note que a palavra
"epitáfio" não aparece na letra. Considero particularmente interessante
esse fato, porque o título acaba funcionando como uma espécie de resumo ou essência do texto. O problema é que muitas vezes as pessoas
não sabem o que significa a tal palavra-resumo. Pior do que isso é constatar que muita gente não sabe e não
move uma palha para saber.
Em algumas das palestras que
profiro país afora, relaciono a canção de Britto com o antológico poema "Epitáfio Para Um Banqueiro",
do genial e saudoso José Paulo Paes:
"Negócio
Ego
Ócio
Cio
O".
Muitas vezes, começo justamente
pelo poema de Paes e, antes da audição da canção de Britto, pergunto o
significado de "epitáfio". Não raro
ouço o som do silêncio. "Mas vocês
não conhecem aquela música dos
Titãs?", pergunto. E aí muita gente
percebe que... Bom, você já sabe
aonde vai chegar essa história.
O "ep(i)-" de "epitáfio" vem do
grego e, nesse caso, significa "por cima de", "sobre". Está presente, por
exemplo, em "epiderme", "epiglote", "epicentro". O elemento pospositivo "-táfio", também grego, significa "funeral", "sepultura". Pois
bem. "Epitáfio" nada mais é do que
uma inscrição tumular, ou seja, algo
que se escreve numa sepultura.
A letra de Britto parece o auto-epitáfio de um morto-vivo de lucidez
tardia; o poema de Paes é puro escárnio do nada em que se transforma a infrene sanha de um banqueiro
ou "homem de negócios". O escárnio, por sinal, é matéria-prima freqüente na obra de José Paulo Paes.
Vejamos o poema "À Moda da Casa", composto por apenas quatro
instigantes versos: "Feijoada / Marmelada / Goleada / Quartelada".
Não me diga que você não sabe o
que significa "quartelada"? Golpe
militar, generais, quartéis, 64, ditadura, tortura... Lembrou, não? Atualizar o poema não seria difícil. Bastaria esquecer por um tempo "goleada" e trocar "quartelada" por...
O fato é o seguinte, caro leitor: ler
é uma viagem, uma interminável
viagem. Um texto leva a outro(s),
que leva(m) a outro(s), que leva(m) a
outro(s) etc. Ler de verdade vai muito além da decodificação do que se
forma com as letras que compõem
as palavras que compõem as frases
que compõem o texto. O mesmo se
dá com a obra de um autor, que leva
a outras obras ou a outros autores.
Se você pretende participar de um
vestibular, concurso público etc.,
saiba que se exige cada vez mais o
domínio da verdadeira leitura. Ler é
(inter-)relacionar, é pensar, é ir
atrás do que não se sabe. Quem assim não age corre o sério risco de ter
de "adaptar" a letra de Sérgio Britto
e cantar o próprio epitáfio ("Devia
ter lido mais, ter ido atrás..."). É isso.
inculta@uol.com.br
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