|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LETRAS JURÍDICAS
Cartas novas para falhas velhas
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
De que vai adiantar o exame mais rigoroso para motoristas, se quase um terço de todos os que dirigem veículos em
São Paulo estão com suas cartas
vencidas ou sem elas?
O custo mais elevado das novas
provas de trânsito deve estimular
o desrespeito à lei, aumentando o
número dos motoristas ilegais.
Ainda mais quando o Detran,
passados três anos, não regularizou nem mesmo o serviço de emplacamento de veículos, feito sem
a licitação exigida por lei?
A distância paradoxal entre a
legislação vigente e a realidade
dos que dirigem sem carta ou com
período de validade vencido é estranha. O Estado, quando tantos
veículos trafegam em condições
irregulares, é o grande culpado.
Talvez o leitor se surpreenda
com a afirmação da responsabilidade da administração pública,
mas ela está na lei. O Código Brasileiro de Trânsito determina, no
artigo 2º, que o tráfego, em condições seguras, é direito de todos e
dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de
Trânsito.
Veja bem: trata-se de trafegar
por ruas e estradas com segurança, como direito de todos. Os cidadãos têm o dever de atuar segundo as normas legais. Se as desrespeitarem impunemente, a responsabilidade principal deixa de
ser deles, mas passa ao Estado.
Afinal de contas verificar quais as
pessoas que não têm condições legais de dirigir não há de ser tarefa
impossível, como tem sido. O mesmo artigo 2º atribui, aos órgãos e
entidades oficiais, "no âmbito das
respectivas competências, adotar
as medidas destinadas a assegurar esse direito".
Decorre do artigo, portanto, que
quando o poder público não cumpre sua obrigação, deve pagar por
isso, como está no parágrafo 6º do
artigo 37 da Constituição. Vejo,
evidente, a descrença do leitor
quanto ao "deve pagar". Tudo
bem, tudo bem, a lei diz o que diz,
mas adianta reclamar? Não. Não
adianta, porque infelizmente o
Estado tem meios infindáveis para retardar qualquer decisão judicial e os aplica sem a menor cerimônia. Por seu lado, o Judiciário tem uma atitude paternalista
quanto aos atos de seus colegas do
Executivo. Cobrar alguma dívida
da União, dos Estados e dos municípios é tarefa extremamente
complicada.
Então, não tem jeito? Aos poucos, o jeito vai aparecer. Um sinal
auspicioso está no mesmo Código
de Trânsito, pois o parágrafo 3º
do artigo 2º diz que os órgãos e
entidades controladores do trânsito respondem objetivamente, no
âmbito das respectivas competências, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão
ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do
direito do trânsito seguro.
Da minha experiência, tenho
constatado serem pouquíssimos
os que sabem dessas duas regras
essenciais do trânsito, relativas à
responsabilidade do Estado, mas
o fato de já existirem é um bom
passo à frente. As transformações
da realidade social (crescimento
rápido da população urbana e introdução maciça do transporte
individual), sobretudo nas grandes cidades, terminaram por
complicar a vida de nossas
cidades.
Nos próximos anos é provável
que a solução demore. Ou até é
muito possível que as condições
gerais piorarão. Exames mais caros, mais complicados (com a
conseqüente corrupção aumentada) ainda subsistirão, enquanto a
cidadania não aprender a cuidar
de seus direitos, e o Judiciário se
capacitar para a resposta breve e
qualificada às queixas que lhe sejam submetidas. A inércia social
sacrifica o interesse comum.
Texto Anterior: Trecho sul será a 2ª etapa da obra Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|