São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

Quem ama (,) educa

Quando Içami Tiba lançou o livro "Quem ama, educa", deus e o mundo me perguntaram se era correta a vírgula que separa "ama" de "educa". Essa pergunta em geral vinha seguida de outra ("Essa vírgula não separa o sujeito do verbo?").
A questão não é tão simples quanto talvez pareça, caro leitor. De fato, o bloco "Quem ama" funciona como sujeito de "educa", e, por via de regra, não se separa sujeito de predicado por vírgula. O que se constata no uso, no entanto, é um pouco diferente do que prega a teoria, já que não raro se verifica o emprego da vírgula em casos semelhantes, em que há verbos contíguos ou muito próximos ("Quem viver, verá", "Quem casa, quer casa", "Quem tem, tem; quem não tem, não se conforma", "Quem tudo quer, nada tem", "Quem procura, acha" etc.).
As gramáticas normalmente registram essas ocorrências, com a ressalva de que, em rigor, a vírgula não é necessária, mas pode ser empregada "por uma questão de clareza". Não vejo muito clareamento com o emprego dessa vírgula, mas, se grandes escritores a empregam ou empregaram, quem sou eu para dizer que elas são proibidas etc.? Limito-me a dizer que, em rigor, essa vírgula é desnecessária. Em meus textos, simplesmente não a emprego.
Posto isso, vejamos uma discussão interessante, causada por este trecho da coluna publicada na semana passada: "Quem leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento dos textos com os quais "dialoga" o texto lido no momento corre o sério risco de não entender nada ou -o que é muito pior- entender o exatamente o contrário do que quis dizer quem escreveu".
Pois bem, caro leitor. Releia o trecho, por favor, com ênfase para os verbos ligados ao pronome "quem". Já releu? Diga se é verdadeira ou falsa a seguinte afirmação relativa ao trecho: afirma-se que a/s conseqüência/s de levar ao pé da letra é/são descontextualizar e/ou não ter conhecimento dos textos com os quais "dialoga" o texto lido no momento.
Já pensou? Vamos lá: a afirmação é falsa. Em "Quem leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem...", a vírgula depois de "letra" não foi empregada como a que se vê em "Quem ama, educa" (vírgula que, como afirmei, eu não empregaria, embora seja ela absolutamente possível, tendo em vista o que se vê nos registros formais da língua). A vírgula que vem depois de "letra" marca a enumeração ("Comprei laranjas, bananas, abacates..."; "Gosto de cinema, música, teatro..."; "Quem pesquisa, observa, registra...").
Em suma, na passagem "Quem leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento...", faz-se uma enumeração em relação ao mesmo indivíduo. Esse indivíduo faz estas coisas: leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento dos textos com os quais "dialoga" o texto lido no momento. É esse indivíduo que "corre o sério risco de não entender nada ou -o que é pior- entender exatamente o contrário do que quis dizer quem escreveu".
Ufa! Sei que hoje exigi verdadeiros contorcionismos de leitura, mas a tarefa me pareceu necessária. E tudo por causa de uma aparentemente inofensiva vírgula! É claro que a leitura atenta do trecho todo (até o fim, isto é, até "do que quis dizer quem escreveu") permitiria eliminar eventuais equívocos interpretativos. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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