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PASQUALE CIPRO NETO
Quem ama (,) educa
Quando Içami Tiba lançou o livro "Quem ama,
educa", deus e o mundo me perguntaram se era correta a vírgula
que separa "ama" de "educa". Essa pergunta em geral vinha seguida de outra ("Essa vírgula não separa o sujeito do verbo?").
A questão não é tão simples
quanto talvez pareça, caro leitor.
De fato, o bloco "Quem ama" funciona como sujeito de "educa", e,
por via de regra, não se separa sujeito de predicado por vírgula. O
que se constata no uso, no entanto, é um pouco diferente do que
prega a teoria, já que não raro se
verifica o emprego da vírgula em
casos semelhantes, em que há verbos contíguos ou muito próximos
("Quem viver, verá", "Quem casa,
quer casa", "Quem tem, tem;
quem não tem, não se conforma",
"Quem tudo quer, nada tem",
"Quem procura, acha" etc.).
As gramáticas normalmente registram essas ocorrências, com a
ressalva de que, em rigor, a vírgula não é necessária, mas pode ser
empregada "por uma questão de
clareza". Não vejo muito clareamento com o emprego dessa vírgula, mas, se grandes escritores a
empregam ou empregaram,
quem sou eu para dizer que elas
são proibidas etc.? Limito-me a
dizer que, em rigor, essa vírgula é
desnecessária. Em meus textos,
simplesmente não a emprego.
Posto isso, vejamos uma discussão interessante, causada por este
trecho da coluna publicada na semana passada: "Quem leva ao pé
da letra, descontextualiza e/ou
não tem conhecimento dos textos
com os quais "dialoga" o texto lido
no momento corre o sério risco de
não entender nada ou -o que é
muito pior- entender o exatamente o contrário do que quis dizer quem escreveu".
Pois bem, caro leitor. Releia o
trecho, por favor, com ênfase para
os verbos ligados ao pronome
"quem". Já releu? Diga se é verdadeira ou falsa a seguinte afirmação relativa ao trecho: afirma-se
que a/s conseqüência/s de levar ao
pé da letra é/são descontextualizar e/ou não ter conhecimento
dos textos com os quais "dialoga"
o texto lido no momento.
Já pensou? Vamos lá: a afirmação é falsa. Em "Quem leva ao pé
da letra, descontextualiza e/ou
não tem...", a vírgula depois de
"letra" não foi empregada como a
que se vê em "Quem ama, educa"
(vírgula que, como afirmei, eu
não empregaria, embora seja ela
absolutamente possível, tendo em
vista o que se vê nos registros formais da língua). A vírgula que
vem depois de "letra" marca a
enumeração ("Comprei laranjas,
bananas, abacates..."; "Gosto de
cinema, música, teatro..."; "Quem
pesquisa, observa, registra...").
Em suma, na passagem "Quem
leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento...", faz-se uma enumeração em
relação ao mesmo indivíduo. Esse
indivíduo faz estas coisas: leva ao
pé da letra, descontextualiza e/ou
não tem conhecimento dos textos
com os quais "dialoga" o texto lido no momento. É esse indivíduo
que "corre o sério risco de não entender nada ou -o que é pior-
entender exatamente o contrário
do que quis dizer quem escreveu".
Ufa! Sei que hoje exigi verdadeiros contorcionismos de leitura,
mas a tarefa me pareceu necessária. E tudo por causa de uma aparentemente inofensiva vírgula! É
claro que a leitura atenta do trecho todo (até o fim, isto é, até "do
que quis dizer quem escreveu")
permitiria eliminar eventuais
equívocos interpretativos. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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