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MOACYR SCLIAR
Sonho americano: a versão canina
Convenceu-se de que o sonho americano estava prestes a se realizar. O plano era simples. O cão conquistaria Trouble
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A cadela Trouble, que pertencia à bilionária nova-iorquina Leona Helmsley,
morta em agosto, herdou US$ 12 milhões
da dona. Junto com o marido, Harry, já
falecido, Leona construiu uma empresa
que administrava alguns dos imóveis de
maior prestígio em Nova York, como o
edifício Empire State, além de hotéis em
várias partes do país. Trouble ("problema", em inglês) fez muitos inimigos por
causa de seu hábito de morder as pessoas. A cadela sofreu ameaças de morte e
de seqüestro, de acordo com a imprensa
americana; sob nome falso vive agora escondida na Flórida. John Codey, que administra os fundos em nome da cadela, disse à rede de televisão americana CBS
na semana passada que segurança, assistência médica, refeições especiais e cuidados com a aparência de Trouble custam cerca de US$ 300 mil por ano. Folha
Online. Brasileiros desistem de seu sonho americano, diz "New York Times". Folha Online.
Como muitos brasileiros, ele foi para a Flórida, clandestinamente, em busca do sonho americano: queria enriquecer, voltar para
sua cidade natal, e passar o resto de
seus dias na boa vida. Mas, como
muitos brasileiros, viu-se frustrado.
Ao cabo de três anos continuava
lavando pratos num restaurante de
segunda categoria dividindo um minúsculo apartamento com quatro
amigos.
Era uma existência sofrida a dele.
Seu único consolo era o cão, Friend,
que ganhara de presente quando o
bicho ainda era filhote. Friend era
um prodígio, graças à habilidade do
dono que se gabava de saber treinar
cães como ninguém.
E aí ele ouviu falar de Trouble, a
cadela que tinha herdado US$ 12 milhões da falecida milionária Leona
Helmsley. Uma dominicana que conhecia, e que por algum tempo namorara, garantiu-lhe que Trouble
estava escondida numa mansão perto do restaurante.
Foram até lá, esperaram algum
tempo do outro lado da rua e, de fato, lá pelas tantas apareceu um homem conduzindo uma bela cadela.
"É a Trouble", cochichou a dominicana. O homem deu uma volta pelo
quarteirão, conduzindo a cadela e
escoltado por dois seguranças e, em
seguida, retornou à casa.
Naquele dia convenceu-se de que
seu sonho americano estava prestes
a se realizar, com a ajuda de Friend.
O plano era muito simples. Treinado
por ele, o charmoso cão conquistaria
Trouble. E, celebrada a união entre
ambos, ele certamente faria jus a
uma parte dos US$ 12 milhões. E aí
ele teria, ainda que de maneira insólita, realizado seu sonho americano.
E não é que funcionou? Acompanhado de Friend começou a rondar
a casa; não tardou muito para que o
cão e a cadela se encontrassem. Foi
amor à primeira vista.
Tomada de súbita paixão, Trouble
literalmente jogou-se sobre Friend.
O homem que cuidava da cadela,
surpreso, não sabia o que fazer, mas
achou graça e concordou em oportunizar novos encontros.
O sonho tinha se realizado? Não,
infelizmente não. Subitamente as
coisas mudaram. Friend agora mostrava-se hostil ao dono; rosnava para
ele e recusava-se a se deixar conduzir para a rua. Como se dissesse: olhe
aqui, seu pobretão, a partir de agora
cada um segue seu caminho.
Ele já comprou a passagem e pretende voltar antes do Natal. No Brasil, ele não tem dinheiro. Mas tem
família, tem amigos. Ah, sim, e tem
um cachorro que não dispõe de dólares, mas que jamais rosna para ele.
A propósito: quem quer dólar, uma
moeda que está em baixa?
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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