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Antes de ficar rico, Renê vivia de favor
Vencedor de R$ 54 milhões na Mega-Sena assassinado no mês passado, ele havia sido lavrador, açougueiro e florista
A Justiça mandou prender a viúva Adriana Almeida, 29; a polícia suspeita que ela tenha planejado a morte do marido de olho na herança
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A RIO BONITO
O lavrador Renê Senna parecia tatear o fundo do poço no
começo de 2002, ano em que
completaria meio século de vida. Morava de favor na casa alugada pela irmã Ângela no Boqueirão, localidade de Rio Bonito (RJ), a pouco mais de 70
km do Rio de Janeiro.
Renê, Ângela e os três filhos
dela sobreviviam do benefício
de aposentado do nonagenário
Estelito Senna. O ancião recebia também pensão de viúvo.
No total, lembra a caçula Ângela, dois salários mínimos.
Ela engordou o orçamento
trabalhando como empregada
doméstica, mas largou o serviço para cuidar do pai provedor.
Cego, senil e insone, Estelito
comia com as mãos.
Renê não contribuía com um
só centavo. A ferida no dedão
do seu pé esquerdo acumulara
tamanha sujeira que bichos a
encobriam. Ele não desconfiava que o diabetes sabotava a cicatrização nem sabia que raio
de doença era essa.
Às 7h já não o encontravam.
A irmã o flagrava no bar para o
desjejum só de cachaça. O tio
virou diversão dos sobrinhos,
que trocavam por água a aguardente das garrafas. "Vou pegar
os filhos da mãe", era a reação
que a família não esquece.
Como o poço era mais fundo,
os dias no Boqueirão foram recordações amenas nos três
anos seguintes, quando Renê
Senna já estava longe de lá. As
duas pernas foram consumidas
pedaço por pedaço até a amputação completa.
Sua sorte mudou ao apostar
R$ 1,50 nas dezenas 03, 21, 25,
37, 54 e 58 em julho de 2005.
Faturou sozinho os R$ 51,9 milhões da Mega-Sena acumulada-corrigidos, R$ 54 milhões.
Por um ano e meio conheceu
a riqueza -material. Teve fazenda de R$ 9 milhões e mulher
loira e formosa. O sonho acabou em 7 de janeiro, quando
um pistoleiro descarregou a
pistola calibre 380 no senhor
sem pernas que bebericava cerveja em um botequim.
A Justiça mandou prender a
viúva Adriana Almeida, 29, e
outras cinco pessoas. A polícia
a aponta como suspeita de armar a morte do marido, de olho
na herança, e investiga a breve
era de bonança, intriga e cobiça
em torno do milionário.
Antes Renê fora um brasileiro como tantos. "Trabalhava de
dia para ter o que comer à noite", diz o amigo Paulo Corrêa de
Castro. É essa "história comum" que a Folha conta hoje.
Na roça
Renê nasceu numa casa de
estuque em Tomascar, recanto
rural cortado por um rio que divide os municípios de Tanguá e
Rio Bonito. Nela se amontoavam em três quartos os pais, roceiros analfabetos, e os 11 filhos. O futuro fazendeiro, dono
de quase mil cabeças de gado,
na infância montava burro para
buscar e distribuir comida ao
lado do pai tropeiro.
O verde exuberante emoldurava o cenário de pobreza. Renê
freqüentou a escola, aprendeu
a ler, mas os pais o queriam na
lida. Ele fugia para a cachoeira
do rio Tomascar. Logo abandonou as aulas.
Com 11 anos seu tempo era
todo para a lavoura. Plantava
aipim, milho, quiabo, maxixe e
laranja, o que o livrou da fome.
Acordava às 6h, pegava a enxada uma hora depois, largava às
17h e dormia às 21h.
Foi assim até a vida adulta. Só
partiu depois dos 30 anos. Seu
horizonte não ia além das montanhas vizinhas -Tomascar é
um vale.
Nunca semeou em propriedade da família, que não tinha
nem um quintal; só para os outros. Como era bom no manejo
do tambor, uma peça para torrar a farinha, engenhos o contratavam. Desossou boi em
açougue.
Na juventude, sem eletricidade, não viu TV. Bom defensor
nas peladas, torcia pelo Fluminense. Seus olhos verdes faziam algum sucesso no forró,
mas os contemporâneos coincidem: não era um sedutor.
Conforme a irmã Jucimar, a
primeira mulher de Renê, Malvina, foi também a primeira namorada.
Rotina
A existência corria tão devagar que o companheiro de roça
Paulo Corrêa de Castro acha
agitado o cemitério onde hoje é
coveiro, com menos de dois enterros por mês. Finda a labuta,
a rotina deles se repetia: temperavam com caninha a prosa
do entardecer.
O alcoolismo corroeu o casamento de Renê e Malvina, repetem mais de dez testemunhas. A união fez com que ele rompesse o cordão umbilical
com sua terra. Uma floricultura
de Niterói, famosa pelas orquídeas, o empregou.
O casal teve a filha Renata e
outro bebê, que nasceu com
problemas e morreu. Ao contrário do que sustenta a viúva
presa -que Renê deixou Malvina ao surpreendê-la com outro-, a mulher o teria largado
devido à bebida.
Sozinho, perto dos 50 anos,
Renê tornou-se vendedor à
margem de rodovia. Retornou à
roça. Em um sítio, deixou cair
sobre o pé o mourão, pedaço de
madeira que sustenta a cerca de
arame. A ferida no dedo não cicatrizava, e ele se abrigou com a
irmã Ângela. Logo outra irmã,
Miriam, o acolheu. Depois foi
Adinéia, a irmã que morava de
graça em uma casinha da escola
pública de Tanguá onde era
merendeira.
Renê chegou sem o dedo. A
seguir, amputaram-lhe metade
do pé. Ainda em 2002, a perna.
Devorava gordura demais, ignorando os conselhos médicos
ao diabético que ele já sabia ser.
De muletas, se escondia no
Flavio's Bar, em frente, para tomar 500 ml de cachaça. Em
2003 foi-se a outra perna, e Renê se isolou. Aposentou-se pelo
INSS e se transformou no homem triste que nunca fora. Caso policial ao morrer, ele era
então problema social.
Ao enriquecer, recompensaria os parentes que o ampararam na desgraça. Quase todos
os irmãos ganharam boas casas
e outros presentes. A filha, uma
residência de R$ 300 mil e um
carro zero. Uma lavradora de
Tomascar, o tanque para lavar
roupa.
Foi um sobrinho que levou às
Loterias Tanguá o jogo simples
do tio. Renê fizera promessa a
Nossa Senhora de Nazaré. Certa manhã, os funcionários da
escola se surpreenderam: Adinéia, os filhos e o irmão haviam
sumido para nunca mais voltar.
Meses depois, o sorteado estouraria 20 caixas de fogos para
a santa. Promessa cumprida.
Os Senna se recusaram a enterrar o irmão no cemitério da
elite de Rio Bonito, no qual a
viúva comprou um jazigo por
R$ 5.000,00.
Pela taxa de R$ 105,29, Renê
descansou sobre o corpo do pai,
que já estava sobre o da mãe no
cemitério de Rio Seco. O velho
camarada o enterrou. Castro, o
coveiro, já arriscou três vezes o
número da cova, 701, no jogo do
bicho. Até agora, continua tão
pobre como um dia foi o seu
amigo Renê.
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