São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GILBERTO DIMENSTEIN

Quarta-feira de cinzas


Não é necessário traduzir o que vimos no Rio. É das piores cenas que já testemunhamos de banalização da vida

NA QUARTA-FEIRA, o país viu duas tragédias ao mesmo tempo - uma delas apresentada em complexos gráficos; a outra, em sangue.
Um garoto de seis anos foi arrastado, no Rio, por um carro durante 15 minutos, espalhando rastros de carne humana por 14 ruas, num total de 7 km; quatro jovens foram presos -um deles de 16 anos. "Foi a pior coisa que vi na vida", resume o delegado Hércules Pires Nascimento, com 30 anos na polícia. A imagem do que sobrara do garoto, com os ossos penetrando o corpo sem a cabeça, lembrava um varal.
De Brasília, foram liberadas estatísticas mostrando que, nos últimos dez anos, piorou o desempenho dos estudantes e aumentou a evasão. Só no ensino médio, perderam-se, de 2005 a 2006, 126 mil pessoas, muitas das quais não vão mais estudar e, provavelmente, nem trabalhar.
As duas tragédias se complementam e se explicam - a começar do fato de que aqueles três criminosos têm o perfil dos jovens que saem da escola bem antes do tempo e, por isso, entre outras razões, são seduzidos pela criminalidade.

 

Pela crueza das imagens, não é necessário traduzir o que vimos no Rio. É das piores cenas que já testemunhamos de banalização da vida - e nos leva a ter vontade de banalizar ainda mais a vida, fazendo justiça com as próprias mãos.
A tradução dos números divulgados em Brasília é mais complexa, tantas são as tabelas que correspondem a notas que, por sua vez, são ligadas a uma imensa gama de habilidades e conhecimentos para cada série escolar.
Um bom resumo (com certa imprecisão, admito) é o seguinte: um aluno do último ano do ensino médio público sabe bem menos que um estudante da 8ª série do ensino fundamental privado.
Mas esse aluno da escola particular provavelmente está no nível da 5ª série da Coréia do Sul. Basta ver estudos publicados que indicam que apenas 21% dos estudantes da elite brasileira conseguem ter notas que os colocam em boa posição nos testes comparativos internacionais.
 

Há vários economistas que, a partir de fórmulas matemáticas, são capazes de calcular quanto significa em termos de renda do indivíduo e do país cada ano a mais de escolaridade. Pode-se estimar, por exemplo, quanto representam em dinheiro aqueles 126 mil jovens que deixaram as salas de aulas entre 2005 e 2006, por não gerarem, no futuro, renda. Tais exercícios da econometria, desenvolvidos nas universidades americanas, vão se aprimorando periodicamente e ajudam a trazer para o debate educacional a elite empresarial. Empresários já conseguem medir quanto vale um trabalhador bem preparado para o aumento da produtividade e, portanto, de seus lucros. Políticos brasileiros já entendem o valor estratégico do capital humano.
 

O que não temos ainda são números tão precisos para mostrar a relação entre baixa educação e criminalidade. A relação é inquestionável pelo simples fato de que a escola ruim é a segunda porta para a marginalidade; a primeira é a família desestruturada.
Existem, porém, fórmulas que ajudam a comprovar essa relação. Pesquisadores da Faculdade de Economia da Universidade de Chicago analisaram dados de criminalidade de várias cidades americanas, associando-os a uma imensa lista de fatores socioeconômicos.
Não se constatou uma relação direta entre a quantidade de pobres e a criminalidade. O que se viu foi que, quanto mais valorizadas as instituições de uma comunidade - família, igreja, escola, polícia, associações recreativas -, menor a violência. Isso se revela no senso de pertencimento e na disposição do grupo de trabalhar junto em torno dos desafios. Os modelos são positivos.
Parte dessa rede de confiança se constrói dentro ou no entorno da escola, um dos espaços de elaboração de perspectivas de vida.
 

Sentir ódio daqueles criminosos arrastando a criança faria, de fato, a diferença, se fosse acompanhado do ódio às circunstâncias que contribuíram com aquela barbárie, como a fragilidade educacional, a má gestão de programas sociais e o baixo crescimento econômico provocado por nossa incompetência.
 

PS: Se saírem do papel e forem bem executadas, 3 das ações em estudo pelo governo federal ajudariam a reduzir o tamanho da tragédia: 1) levar o programa de saúde da família à escola, pois parte expressiva dos alunos vai mal por causa de doenças simples de serem tratadas; 2) apoio em recursos à prefeitura que lançar programas que envolvam a comunidade no processo de aprendizado e mantenham o aluno, dentro ou fora da escola, em alguma atividade complementar; 3) extensão do Bolsa Família a jovens de até 17 anos.


Texto Anterior: Perfil: Musa perdeu reinado para Galisteu
Próximo Texto: Mudanças prometidas no Réveillon só acontecem após Carnaval
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.