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CECILIA GIANNETTI
Meninos e meninas
O meninismo sempre existiu como o lado doméstico, escondido e até mesmo lúdico do machismo
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"TÁ CADA VEZ mais fácil ser
homem", dizia com desdém de cuspe, e depois
mandava o "rerere" grave emprestado dos velhos da última geração de
boêmios cariocas. Aí repetia a sentença, afogando as sílabas finais da
pretendida afronta num gole que
matava 300 ml de chope. Eu não dava bola à provocação embutida na
fanfarra do palestrante. A amizade
entre sexos opostos demanda certo
grau de surdez voluntária para que
desentendimentos sejam evitados.
Estava longe de ser das coisas
mais irritantes que o amigo -agora
desaparecido- costumava dizer. A
explicação que engrenava após a frase de efeito ("Tem mulher demais
no mundo! Desesperadas! Sem filtro! Engolem qualquer porcaria!"
etc.) não chegava a ser a sua contribuição menos graciosa a uma conversa de bar em que havia -comprovando, em alguma instância, sua
precária tese- mais mulheres do
que homens.
Nem mesmo podia ser considerada uma postura machista. Tal pecha
já caducou. Impossível encaixá-la
-sem forçar a barra- em qualquer
padrão de comportamento vigente
desde o final do século passado; não
serve para qualificar as teorias e piadas do meu amigo desaparecido. E
não foi só ele que sumiu. O próprio
machismo tem estado ausente. Ou
assumiu outras formas: como o meninismo, por exemplo, que de inédito nada tem.
O meninismo sempre existiu, por
baixo de pêlos viris e ternos bem ou
malcortados, como o lado doméstico, escondido e até lúdico do machismo. Bem traduzido no tom imperativo com que o homem-menino da casa pergunta se a sua refeição ou a roupa está pronta, entre
outras questões práticas que cabem à governanta, secretária, faxineira, mãe e amante de cada moleque. Ao menos é assim que ouço falarem de seus ex-maridos uma e
outra amiga descasadas.
Há ainda o depoimento da vizinha gay que, separada da mulher,
notou que suas roupas já não flanavam elegantemente, sozinhas, da
máquina de lavar ao varal e do varal
até que se recolhessem ao armário.
Mas que alguém deveria lavá-las e
levá-las de um canto ao outro. Na
ausência da ex-mulher -que sempre cuidara de tudo enquanto ela
trabalhava no escritório, longe da
área de serviço-, quem teria de assumir as tarefas domésticas era ela
mesma. O que não foi capaz de fazer ainda, enfraquecendo assim argumentos sexistas que nunca foram lá grande coisa.
Neste mês das mulheres, coincidentemente, faz quatro semanas o
sumiço do frasista em questão
(meu amigo meninista, autor do
clássico pensamento alcoolizado:
"Tá cada vez mais fácil ser homem"). Por isso lembrei do repertório moderno de vantagens masculinas das quais ele se gabava
-não por machismo, mas por saudades do tempo em que ser machista ainda significava alguma coisa.
Ainda que fosse apenas chamar a
Betty Friedan de "sapatão".
Mas onde se enfiou esse meu
amigo gaiato, menino de 11 anos em
corpo de 30, com suas verdades
masculinas supostamente inapeláveis, que sem querer transformava
em piadas? Dedico-lhe uma anedota, para não perder o hábito:
Pane de homem não se dá durante o vôo, mas quando ele se vê obrigado a pôr os pés no chão. Se, por
outro lado, consegue voar, vai embora feito folha de papel solta, Guido em 8 e 1/2, cada vez mais alto. As letras que formam seu nome despencam entre Paris e Madri, desabam como chuva sobre capitais
frias as páginas de sua história pregressa, de quando teve chão. E agora, onde pousar, renascerá menino.
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