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"Devolvo-lhe este cargo com uma enorme frustração"
Leia abaixo a íntegra da carta de
Emanoel Araújo envida ontem à
Folha:
Caminante no hay camino, se hace
camino al andar
Antonio Machado, poeta espanhol
Ao saudoso Mário Covas, in memoriam
Carta aberta ao prefeito de São Paulo,
José Serra, ou a propósito de uma renúncia
Senhor prefeito José Serra:
Quero aqui, através "dessas mal traçadas linhas", começando dessa forma
prosaica, a lhe dizer do grande equívoco
que foi minha nomeação, em face de um
convite cheio de esperança feito a mim,
antes de sua posse.
Eu mesmo já houvera recusado outros
convites iguais ao seu, por entender que
uma secretaria de cultura se faz com
CULTURA, se faz conhecendo as causas
e conseqüências do conteúdo maior que
essa simples palavra tem como significado, se faz contextualizando na história,
com a memória, com a vida pulsando a
cada momento, sem achaques, sem privilégios.
Por que essa conquista tem de e deve
ser um bem para todos, e eu falo de CULTURA, sem arremedos, sem o maneirismo desses poucos que pensam que são os
privilegiados de Deus e que podem sentar-se numa poltrona de um teatro com
toda sua arrogância e ignorância, sem se
dar conta que a poltrona em que estão
sentados está rota ou com o veludo que,
de tão gasto, não tem mais cor, com seu
estofo em péssimas condições, e se saciam, no intervalo, tomando champanhe
para exibir suas roupas e bijuterias, já
que as jóias verdadeiras ficaram bem
guardadas nos cofres -usá-las num teatro no centro da cidade, ameaçados pela
pobreza, seria, aí sim, uma ameaça aos
tesouros da família.
Não, senhor prefeito, isso só não é cultura; cultura é o que foi produzido por
uma verdadeira elite do saber e do conhecimento, erudito ou popular, através
da qual esse repertório existe até hoje, depois de séculos de sua criação; cultura,
portanto, são todas as ações criativas de
artistas que deram sua vida e seu ser para
estarem mais próximos de Deus; artistas
são esses seres abnegados, renegados e
desapercebidos por essa sociedade que
disputa salões nobres para repousar seu
cansaço por tamanho esforço ou castigo,
na tentativa de parecer "culto".
As recusas anteriores para essa secretaria tão ambicionada pelos gaviões dessa
selva de pedra em que habitamos ocorreram mesmo por entender que não há o
que fazer com cultura diante dessa política de loteamento hoje tão em voga na vida pública brasileira.
Cultura, pensou Mário de Andrade,
quando criou esse departamento, em seu
primeiro parágrafo: "O departamento de
cultura é o órgão destinado a criar, desenvolver e proteger quaisquer manifestações que interessem a cultura no município de São Paulo". Mas ainda há uma
outra definição para cultura, não mais
como regulamento,
mas como grande significado de colocar
uma sociedade e uma
nação na hegemonia
do mundo, com seus
próprios dogmas, e,
para isso, há que se
dispensar os domínios desses pretensos
mecenas, que jamais
colocam a mão no
bolso, porque essa
casta de privilegiados
a que o governo tem
se curvado e os dogmas a que me referi
não precisam desses
senhores, precisam
mesmo é dos verdadeiros artistas, que
deixam para a humanidade seus talentos,
seus legados e seus sonhos.
A arte africana de um continente agora
dizimado e desamparado nos serve como exemplo de uma arte produzida por
um povo, por uma diversidade única na
história da humanidade, que mudou os
rumos da arte ocidental e que está nos
melhores e mais magníficos museus do
mundo. Agora mesmo a França lhes dedica o seu mais novo e surpreendente
museu -o Musée des Arts Premiers-,
isso sim é cultura sem mecenas, sem pavões suntuosos posando nas revistas
diante das suas mesas cheias de falsos
cristais e louças cheias de colesterol para
suas volumosas barrigas de mais de cem
centímetros.
Tão pouco é cultura esses ocupadores
dos espaços públicos posando de benfeitores das artes e dos museus construídos
e edificados como marco dessa pobre e
ao mesmo tempo rica cidade, ameaçados
agora pelo projeto de uma torre de 125
metros de altura, assemelhando-se a um
"pirocão", com o risco de ser implantado
no topo de um edifício tombado da avenida Paulista, a pretexto de ver o mar e
angariar recursos para o Masp, projeto
este de um arquiteto considerado negligente com um dos patrimônios maiores
da América Latina.
Mais que um alerta, este artigo é para
dizer que não me acovardei diante do desafio dessa secretaria que deixo agora à
sua disposição, para que o senhor possa
nela internar o próximo incauto e para
que possa nomear para esse espaço, tratado como uma pocilga, sem condições
infra-estruturais, sem
a menor possibilidade de respirar diante
de suas precárias instalações, com seu mobiliário miserável, e,
nos armários, como
altares, vasinhos ditos
de defesa e proteção,
desses funcionários
desesperançados com
tanta injustiça, como
que castigados nessas
mesas miseráveis,
nessas cadeiras rasgadas e tortas pelo uso
de tantos anos, sem
que lhes dêem um
pouco de auto-estima, perspectiva e consideração.
Não, isso não é e nunca foi cultura! Isso
é mesmo uma vergonha que os senhores
políticos teriam que resolver antes de beneficiar esses gaviões sedentos, insaciáveis, independentemente de quem esteja
ocupando o poder.
Não, isso não é cultura! Também não é
cultura essas leis para privilegiados, demandadas por estes últimos e formuladas por legisladores levianos. O verdadeiro teatro foi aquele feito pelo TBC e
pelo Teatro de Arena, entre outros, lembrando aqui, Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Walmor Chagas, Paulo Autran, Armando Bogus, Chico de Assis, Abdias do
Nascimento, Plínio Marcos, Solano Trindade, Alberto Daversa e tantos e tantos
outros, e não esse compadrio, como tão
bem assinalou Antunes Filho, em um lúcido e muito claro artigo. Enquanto a Lei
de Fomento paga 9 milhões de reais para
grupos a quem se dispensou da obrigação legal de comprovar o uso e emprego
dos recursos públicos, o Teatro Municipal não possui equipamentos mínimos
para suas produções, e o seu diretor recebe pouco mais de 4.000 reais como salário.
O senhor pensa mesmo que isso é cultura? Não, senhor prefeito, repito aqui
novamente, museu não é butique, já disse isso à secretária Claudia Costin, quando esta quis instalar o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro na Casa das Rosas. E lhe digo que não se pode colocar
dois museus com diferentes tipologias
num só edifício, no caso, o da Prodam,
que, além do mais, necessitará de muitos
milhões, além do mais, inexistentes para
sua mudança e novas instalações.
Quando a Generalitat Valenciana e o
Ivam (Instituto Valenciano de Arte Moderna) me incumbiram de convidar o
presidente Fernando Henrique Cardoso
para abrir o 6º Simpósio Ibero-Americano de Cultura, como já o fizera o presidente do Uruguai, Júlio M. Sanguinetti, e,
por impossibilidade de aceitá-lo, sugeri à
minha velha amiga Consuelo Ciscar, hoje
diretora do Ivam, que convidasse o prefeito Serra -o fiz na esperança de que ele
visse a extraordinária pujança cultural da
cidade de Valencia, não apenas o Ivan
mas também a Casa da Ópera, o Museu
da Ciência, o Oceanográfico e os projetos
de um dos maiores arquitetos contemporâneos, Santiago Calatrava. Pensei
também na forma de como Valencia está
restaurando seu bairro gótico e seus deslumbrantes monumentos dos séculos 12
e 13. Guardava também a esperança de
que essa visita lhe abrisse a mente, como
inspiração para a cidade que o senhor
acaba de receber para administrar.
A minha saída justifica-se por ter sido
internado sem nenhuma infra-estrutura
numa secretaria desprovida de recursos
humanos, "apagando incêndios" deixados pelo meu antecessor, que eu, ingenuamente, desconhecia. Mas, como ele é
ator, soube interpretar muito bem o seu
papel. Deixo a secretaria porque o senhor
não tomou conhecimento desses cem
penosos dias de administração em que,
graças a poucos e abnegados servidores,
conseguimos realizar muitos projetos e
ações, inclusive o catálogo "Brasileiro,
Brasileiros", no qual encontra-se inserido um texto seu e a cujo lançamento, ontem, o senhor não compareceu, como
programado.
Por outro lado, num enorme esforço
pessoal, o maestro Jamil Maluf, convidado por mim a dirigir o Teatro Municipal,
solitário, marcou esse início de gestão
com uma temporada gratuita, de qualidade excepcional, apoiado tão somente
em seus corpos estáveis, para o povo de
São Paulo. A galeria Olido está apresentando duas exposições, uma delas com
tema de interesse internacional e outra
de caráter experimental e de ponta, renovada por um sistema de comunicação
que nunca antes havia sido instalado. As
demais linguagens artísticas presentes
naquele complexo cultural (cinema, dança e música) seguem suas carreiras, com
público crescente e cativo naquele espaço.
Devolvo-lhe o cargo
com uma enorme
frustração, não só minha mas também de
minha reduzida equipe, a qual não foi possível ampliar para executar um projeto que
orgulharia, seguramente, o seu governo
e todos os paulistanos
-a começar pela celebração dos 70 anos
do departamento cultural desta cidade e o
de suas casas de cultura, todos criados pelo
genial paulistano Mário de Andrade, em
1935.
Devolvo-lhe ainda o seu pretenso
honroso convite na expectativa de que
poderia ter realizado a reforma da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a instalação e consolidação do Museu da Cidade, no Palácio das Indústrias, da Escola de Música, do Museu do Futebol, do
Museu da Cultura Alimentar Brasileira
e, no edifício da Prodam, do Museu de
Arte Moderna, caso houvesse o patrocínio e o interesse de sua presidente.
Devolvo-lhe essa secretaria desejando
que se faça mesmo o Museu da Criança
na Cracolândia, mas rogo que não se esqueça de incluir, nesse espaço, essas
crianças abandonadas ao infortúnio da
sorte. Faça o Museu do Futebol, mas não
esqueça a Pinacoteca Municipal, guardada na reserva técnica do Centro Cultural
São Paulo. Entregue a OCA aos gaviões
que têm enormes olhos sobre ela, mas
não se esqueça do Museu do Folclore,
que de lá foi arrancado, como também o
Museu da Aeronáutica e a memória de
Santos Dumont.
Coloque na Prodam o Museu de Arte
Moderna e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo,
duas instituições cujas gestões se opõem
por suas naturezas, uma privada e outra
pública. Faça-o, como se faz usualmente
com o arranjo de um quarto de despejo,
mas não toque com sua impropriedade
no Museu Afro-Brasil, porque este é uma
conquista de anos, resultante da grande
dívida que o Brasil tem para com os seus
negros e afro-descendentes que o construíram. Saiba que estaremos dispostos a
defendê-lo com a mesma energia com
que edificamos nossa
nação em cinco séculos. Porque o Pavilhão Manoel da Nóbrega há muito tem
sido ambicionado pelos donos da cultura
oficial, que pensam
que um museu dessa
natureza não deveria
estar em área tão nobre. No entanto, ele
tem sido visitado nesses seis meses de existência por um enorme contingente de estrangeiros, brasileiros, brancos e, sobretudo, negros, não habituados a freqüentar tais espaços -para relembrar o quanto este país é devedor a esse nosso valoroso povo miscigenado.
Resolvi lhe escrever esta carta, aberta à
imprensa, para que toda a população de
São Paulo saiba, sim, que existia um projeto cultural que vinha sendo desenvolvido e já praticado em minha gestão, para
não sair num silêncio elegante e cúmplice de circunstâncias e conjuntura alheias
à minha vontade. Escrevi também esta
carta para que ela fique registrada como
documento e não caia no mesmo silêncio com que que eu mesmo, o embaixador Marcos Azambuja e a diplomata Helena Gasparian sofremos, ao perdermos
o projeto do Ano 2005 do Brasil na França -e, sem pudor, as autoridades oficiais de plantão fizeram uso de seu conceito.
Escrevo esta carta em defesa de minha
própria contribuição, que é pública e notória em prol da cultura brasileira, nesses
meus 40 anos de abnegada dedicação de
vida e de criação artística, que me tem
valido como respaldo e aval e que deu
origem, acredito, a seu próprio convite
para integrar sua equipe de secretários.
Emanoel Araújo
Escultor, curador, cuny distinguished
visiting professor of art, filho de Ogum,
ex-secretário municipal de Cultura de
São Paulo.
São Paulo, 10 de abril 2005.
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