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GILBERTO DIMENSTEIN
O vestibular do futuro
Proposta de valorizar a reflexão crítica na seleção para a USP terá impacto positivo em todo o país
A DECISÃO da Universidade de
São Paulo, anunciada na semana passada, de valorizar a
reflexão crítica nos seus testes de
vestibular é uma notícia extraordinária -é uma proposta que vai além
do vestibular e de São Paulo. Isso
porque deve mexer no cotidiano das
escolas em geral, exigir mais de alunos e reciclar os professores, resultando em um impacto positivo em
toda a educação brasileira.
Em essência, a proposta é medir
menos o conhecimento acumulado
em cada disciplina, como química,
física ou história, do que a habilidade em relacionar dados. É o que os
educadores chamam de questões interdisciplinares. A nota é conferida,
portanto, não pela informação sobre
um assunto específico, mas pela sua
relação com as demais matérias.
Isso significa que uma pergunta
sobre o aquecimento do planeta
provocado pelo efeito estufa pode
exigir o domínio do estudante em
química, física, matemática, história, biologia e, quem sabe, literatura.
Por que, afinal, essa mistura teria
tanto efeito não só no vestibular mas
em toda a educação?
Em primeiro lugar, porque a USP é
uma das instituições universitárias
mais renomadas nacionalmente, e,
por isso, seu vestibular é um dos
mais disputados por candidatos de
todo o país. Em segundo -e mais
importante-, é porque o modelo de
teste anunciado, embora sem maiores detalhes, abala a estrutura curricular do ensino médio e se estende
ao fundamental.
Atualmente, o vestibular da USP
demanda um imenso acúmulo de
informações dos candidatos. Por
exemplo: o aluno tem de estudar, em
história, da pré-história a fatos contemporâneos, chegando ao mensalão. Educadores reclamam há muito
tempo, e com boa dose de razão, que
não conseguem aprofundar os tópicos. Sei como os professores mais
sérios tentam escapar desse esquema cruel, propõem atividades mais
conectadas ao cotidiano, estimulam
a realização de projetos. Mas estão
conscientes de que, se os alunos não
entrarem nas melhores faculdades,
a escola será trucidada pelos pais. É
perverso e ignorante, mas é assim
que funciona.
Para atender às demandas de entrada na universidade, o currículo se
divide em disciplinas que, na maioria das vezes, não se comunicam.
Concluído o vestibular, os alunos esquecem o que aprenderam, por falta
de utilidade.
Em poucas palavras, ensina-se
muita coisa desnecessária, pela simples razão de que informação só tem
valor quando revelamos sua utilidade -ou se gera prazer. Faça, caro leitor, um teste: tente lembrar o que
aprendeu sobre a tabela periódica.
O problema mesmo é a desconexão
entre as exigências do mercado e o
sistema rígido de disciplinas. Os responsáveis pelos departamentos de
recursos humanos repetem sem parar que as empresas querem indivíduos criativos, capazes de trafegar
pelas mais diversas áreas do saber.
Exigem-se autonomia de pesquisa,
capacidade de trabalhar em grupo e
empreendedorismo. São pessoas
que, em suma, respondem aos problemas com rapidez -e os problemas envolvem uma série de fatores
inter e multidisciplinares.
Isso não está nem remotamente
próximo do bitolado que só aprende
a pensar de forma fragmentada.
Se tal modelo de vestibular vai exigir
muito das escolas privadas, mais
ainda será exigido das públicas. A
habilidade de associação de dados
dos alunos vem, em boa parte, da base familiar (famílias leitoras são fundamentais), do estímulo a programas extracurriculares e da vivência
cultural.
Daí que o sonho de inclusão dos
mais pobres nas universidades,
além de eventuais benefícios com
pontuações diferentes, terá de manter na agenda projetos de escola em
tempo integral e da montagem de
conexões entre a sala de aula e a cultura e a vivência comunitária, como
se fossem um único ambiente de
aprendizagem. Será cada vez mais
papel das escolas públicas fazer essas conexões e treinar profissionais
para essa tarefa.
Até se conseguirá, aqui e ali, reduzir as exigências para entrar no ensino superior, mas dificilmente tais
facilidades serão extensivas ao mercado de trabalho. A exclusão seria,
assim, apenas questão de tempo.
P.S- Quem ensina a melhor forma
de ajudar os pobres, sem demagogia,
é a Embraer, que criou uma escola
de ensino médio gratuita selecionando alunos de instituições públicas. Devido à sua altíssima qualidade de ensino, eles estão entrando
nas melhores universidades. É isso o
que deveria ser disseminado pelo
país. Tais unidades poderiam ser
centros de experimentação para influenciar toda a rede pública, como
foram, no passado, as escolas de
aplicação e os centros vocacionais. É
uma pena que a USP tenha cogitado,
mas abandonado projeto parecido.
gdimen@uol.com.br
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