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MOACYR SCLIAR
Fatídica manhã
Ele anunciou que não poderiam, como decidiram em meio aos arroubos da noite anterior, viver juntos
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Começa com um "na sua casa ou na minha?", e dependendo de estarem na segunda ou terceira garrafa de vinho, em
meia hora estarão discutindo sobre se
vão usar o mesmo computador ou se é
melhor cada um ter o seu.
E o cachorro, vai? E o gato, fica? Na manhã seguinte -segunda-feira- ela acorda outra mulher e passa o dia fazendo
planos. Quanto a ele -bem, todos sabem
que o álcool provoca uma grande amnésia, sobretudo nos homens.
Ele acorda e sai todo lampeiro, volta para
seu adorado espaço e vai ficar espantado
quando telefonar à noite dizendo que
está exausto, "vamos deixar para nos ver
amanhã", e ela responder de mau
humor.
Homem e mulher, uma encrenca; mas se
um dia eles falarem a mesma língua pode
até ser que comecem a se entender. Mas
também pode acontecer de ficar tudo
muito sem graça.
Danuza Leão (Cotidiano), 3 de setembro
O TEMPO passa, não é mesmo?
O tempo passa, e todos os domingos dão lugar a segundas-feiras, todas as noites de paixão dão lugares a manhãs de trabalho.
Naquela manhã não foi diferente; ali
estavam eles, na casa dela (a casa dele ficava um pouco distante do bar
em que tinham se conhecido), na
mesma cama -acordando. Ele sorriu, cortês, ela sorriu, um pouco desconcertada.
Beijaram-se, naturalmente (mas havia nesse beijo de bocas pastosas um pouco de anticlímax), e ele perguntou se podia usar
o banheiro. Claro, disse ela, a casa é
sua, sinta-se à vontade.
Saindo de lá, já vestido e pronto
para ir embora, ele anunciou que tinha algo a dizer. E que era o seguinte: não poderiam, como haviam decidido em meio aos arroubos da noite anterior, viver juntos. Por uma razão muito simples: ela tinha um gato, do qual não queria se separar. E
ele tinha um cachorro, do qual não
queria se separar também. E seu cachorro odiava gatos. Pior ainda, ficava doente quando chegava perto de
um felino. Ele amava seu cachorro,
não se desfaria dele por razão alguma no mundo. De modo que o melhor seria eles se encontrarem apenas de vez em quando. Vou telefonar, prometeu, e, depois de um rápido beijo, foi embora.
Ela ficou ali, sentada na cama. Arrasada, claro. Sabia que as coisas terminariam assim -sempre terminavam-, mas, por alguma razão, aquele era um desfecho que não conseguia aceitar. Então, os planos de ambos (verdade que feitos depois da
terceira garrafa de vinho) desfaziam-se assim, sem mais nem menos? Por causa do cachorro dele?
Uma dúvida lhe ocorreu de súbito:
ele tinha, mesmo, um cachorro?
Porque, tanto quanto ela lembrava,
não tinha mencionado isso. Num
impulso, pegou o telefone da mesinha de cabeceira e ligou para a casa
dele. Atendeu a faxineira. Ela disse
que era da clínica veterinária e que
estava ligando para lembrar que naquele dia o cão precisava ser vacinado. Mas o dono da casa não tem cachorro nenhum, disse a faxineira,
deve ser engano.
Ela desligou. E de repente lembrou-se: era segunda-feira, 11 de
setembro, aniversário do ataque às
torres gêmeas em Nova York. E aí
sentiu-se como os nova-iorquinos
deveriam ter se sentido naquela
manhã: traída, violentada, apavorada. E, sobretudo, profundamente
indignada.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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