São Paulo, segunda-feira, 11 de setembro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Fatídica manhã


Ele anunciou que não poderiam, como decidiram em meio aos arroubos da noite anterior, viver juntos

 Começa com um "na sua casa ou na minha?", e dependendo de estarem na segunda ou terceira garrafa de vinho, em meia hora estarão discutindo sobre se vão usar o mesmo computador ou se é melhor cada um ter o seu.
E o cachorro, vai? E o gato, fica? Na manhã seguinte -segunda-feira- ela acorda outra mulher e passa o dia fazendo planos. Quanto a ele -bem, todos sabem que o álcool provoca uma grande amnésia, sobretudo nos homens. Ele acorda e sai todo lampeiro, volta para seu adorado espaço e vai ficar espantado quando telefonar à noite dizendo que está exausto, "vamos deixar para nos ver amanhã", e ela responder de mau humor.
Homem e mulher, uma encrenca; mas se um dia eles falarem a mesma língua pode até ser que comecem a se entender. Mas também pode acontecer de ficar tudo muito sem graça.
Danuza Leão (Cotidiano), 3 de setembro

O TEMPO passa, não é mesmo?
O tempo passa, e todos os domingos dão lugar a segundas-feiras, todas as noites de paixão dão lugares a manhãs de trabalho.
Naquela manhã não foi diferente; ali estavam eles, na casa dela (a casa dele ficava um pouco distante do bar em que tinham se conhecido), na mesma cama -acordando. Ele sorriu, cortês, ela sorriu, um pouco desconcertada.
Beijaram-se, naturalmente (mas havia nesse beijo de bocas pastosas um pouco de anticlímax), e ele perguntou se podia usar o banheiro. Claro, disse ela, a casa é sua, sinta-se à vontade.
Saindo de lá, já vestido e pronto para ir embora, ele anunciou que tinha algo a dizer. E que era o seguinte: não poderiam, como haviam decidido em meio aos arroubos da noite anterior, viver juntos. Por uma razão muito simples: ela tinha um gato, do qual não queria se separar. E ele tinha um cachorro, do qual não queria se separar também. E seu cachorro odiava gatos. Pior ainda, ficava doente quando chegava perto de um felino. Ele amava seu cachorro, não se desfaria dele por razão alguma no mundo. De modo que o melhor seria eles se encontrarem apenas de vez em quando. Vou telefonar, prometeu, e, depois de um rápido beijo, foi embora.
Ela ficou ali, sentada na cama. Arrasada, claro. Sabia que as coisas terminariam assim -sempre terminavam-, mas, por alguma razão, aquele era um desfecho que não conseguia aceitar. Então, os planos de ambos (verdade que feitos depois da terceira garrafa de vinho) desfaziam-se assim, sem mais nem menos? Por causa do cachorro dele?
Uma dúvida lhe ocorreu de súbito: ele tinha, mesmo, um cachorro?
Porque, tanto quanto ela lembrava, não tinha mencionado isso. Num impulso, pegou o telefone da mesinha de cabeceira e ligou para a casa dele. Atendeu a faxineira. Ela disse que era da clínica veterinária e que estava ligando para lembrar que naquele dia o cão precisava ser vacinado. Mas o dono da casa não tem cachorro nenhum, disse a faxineira, deve ser engano.
Ela desligou. E de repente lembrou-se: era segunda-feira, 11 de setembro, aniversário do ataque às torres gêmeas em Nova York. E aí sentiu-se como os nova-iorquinos deveriam ter se sentido naquela manhã: traída, violentada, apavorada. E, sobretudo, profundamente indignada.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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