São Paulo, quinta-feira, 11 de outubro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Pode ser que o dono anterior..."


O que interessa é "dobrar" o outro, e aí a verborragia se torna instrumento para convencer. Se colar, colou...

"SE HOUVESSE espaço para um segundo título para esta coluna, ele seria algo como "A linguagem da suposta "esperteza" ou distração" ou "Já que somos todos "espertos" ou distraídos...".
Explico: dia desses, recebi a visita de um técnico de uma empresa de rastreamento, cuja missão era "desinstalar" o aparelho posto no meu carro por uma seguradora. Como não renovei a apólice, o equipamento (que estava no interior da lateral esquerda do carro) foi removido.
Para encurtar a conversa, o serviço foi mal executado. O resultado é que o cinto de segurança ficou preso, ou seja, saía de seu "casulo" com dificuldade e rapidamente começou a apresentar sinais de esgarçamento nas bordas. Chamei o pessoal da empresa, e, claro, o esgarçamento já existia, é decorrência do tempo de uso, blablablá, blablablá, blablablá.
Tentando convencer-me de que eu não tinha razão, o gentil e educado (sem ironia) técnico usou mil e um argumentos, até lançar mão do definitivo: "Pode ser que o dono anterior do veículo...". "E quem disse que há dono anterior?", perguntei.
Pois era aí que eu queria chegar. A linguagem empregada por quem precisa convencer o interlocutor de que é ele que mente ou "se engana" muitas vezes se vale de pressupostos falsos. Sabe qual foi o do técnico? Afirmar que o carro teve dono anterior. Sim, porque quem diz "Pode ser que o dono anterior..." não manifesta dúvida sobre a existência de dono anterior; manifesta dúvida sobre o comportamento do dono anterior, cuja existência já é dada como certa.
Entendeu, caro leitor? Em muitos casos, a língua não é muito diferente da matemática, em que 2 + 2 = 4. Repito: em "Pode ser que o dono anterior..." a expressão "pode ser" (usada no dia-a-dia quando se quer expressar dúvida, hipótese, possibilidade) põe em dúvida o comportamento do dono anterior, não a sua existência.
Na tentativa de mostrar que o outro é "esperto" ou "distraído", vale tudo, e isso começa (e termina) na construção das frases, ou seja, na expressão do pensamento, na língua. As palavras escolhidas e o modo como se constroem as frases muitas vezes contêm premissas que não foram comprovadas -mas quem disse que o que interessa é comprová-las? O que interessa é dobrar o outro, e aí a verborragia se torna instrumento de convencimento. Se colar, colou...
Recentemente, relatei um episódio ocorrido comigo no aeroporto de Congonhas. Informei a um agente de trânsito que o semáforo para pedestres não estava funcionando, isto é, não saía do verde (para os carros). Que me disse ele, incontinente? "O senhor tem que apertar o botão." Só faltava ter dito "O senhor tem que estar apertando o botão".
Que demonstrou o agente ao dizer que eu tinha de apertar o botão? Que partia do pressuposto de que as máquinas não falham; quem falha é o ser humano, que, desinformado etc., não sabe como funcionam as engenhocas do mundo moderno.
Lembra o episódio do "Até que ela é inteligente, apesar de ser mulher"? Não preciso traduzir o infeliz julgamento implícito na frase, preciso? Alguém já disse que há mais coisas no ar do que aviões de carreira. Pois isso vale também para frases ditas "ingênua" ou "inocentemente", em cujas entrelinhas (linhas, na verdade) pode haver o diabo. É isso.

inculta@uol.com.br


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