São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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MUDANÇA DE RUMO

Bares como Casa Belfiori, Berlin e D-Edge fazem fervilhar bairro que já abrigou o Radar Tantã e o Projeto SP

Noite da Barra Funda revê pico dos anos 80

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Cazuza está no banheiro do Radar Tantã cheirando cocaína. É 1985. O resto dos integrantes do Barão Vermelho bate na porta para que ele saia e venha cantar para uma multidão cada vez mais ansiosa. Ele não responde, ou responde com frases desconexas.
Até que Roberto Frejat, seu parceiro, perde a paciência e empurra com força a porta. Esta cede e atinge o músico, que começa a sangrar. Os mais novos devem se lembrar da cena da cinebiografia "O Tempo Não Pára", de 2004.
Sofia Carvalhosa lembra-se por ter estado lá. Foi quem levou Cazuza (1958-1990) ao hospital. "Fomos ao pronto-socorro de fraturas da Lapa", diz. Então com 24 anos, a assessora de imprensa era hostess do Radar Tantã. "Hostess, produtora cultural, assessora."
"Tudo" acontecia na "danceteria" (equivalente histórico a "club") da Barra Funda, que reunia de anônimos ao restaurateur Rogério Fasano, de futuros alguéns ao designer Carlos Mota.
A vida noturna do bairro paulistano vem em ondas como o mar da poesia de Vinicius de Moraes (1913-1980). A mais importante é do meio dos anos 80, quando o Radar Tantã foi inaugurado e era o farol, seguido depois pela segunda versão do Projeto SP.
A atual tem como centro a Casa Belfiori, também conhecida como Porcão ou Bar do Rock, ao redor do qual orbitam o Berlin e o D-Edge. A diferenciar os momentos, o fato de que o atual mostra-se mais longevo e se move mais ao centro da Barra Funda -o da década retrasada foi efêmero e englobava também nacos do Bom Retiro e outros bairros-limítrofe.
Ninguém sabe dizer o motivo de tal renascimento e longevidade -assim como não há teorias sobre o porquê de, de tempos em tempos, a zona central ser "redescoberta" pela noite. Cansaço dos bares e bairros da moda, talvez.
"Talvez sejam pessoas cheias da Vila Madalena", arrisca Diego Belda, 30, um dos donos da Belfiori, morador da Barra Funda, enquanto serve um pint (diga "páint", ou 473,176 ml) de Guinness, a cerveja escura irlandesa que é marca registrada do bar.
São marcas também as paredes vermelhas, o veludo preto na porta, a luz vermelha a iluminar a esquina, encimada pela data de construção do prédio, 1925, e o nome do primeiro estabelecimento que ali funcionou, um armazém de secos & molhados.
Com ele concorda Guilherme Fazan, 24, publicitário, encostado no balcão, os restos do que comeu sobre um aparador de pratos que é o pôster do filme brasileiro "Lua de Mel e Amendoim", de 1971, com Renata Sorrah e José Lewgoy. "Toda vez que entro aqui, penso: "É aqui!'", resume.
Outro motivo é o preço do aluguel, ainda razoável. Pelo menos é o que diz Jonas Serodio, 24, um dos donos do Berlin, em funcionamento desde o meio do ano, primeiro subproduto da popularidade da Belfiori, que é de outubro de 2003. "Nós queríamos uma casa barata, fora do circuito", diz.
O Berlin ainda está pegando, mas já tem noites populares. Seja qual for o dia, porém, a escritora Clarah Averbuck ("Vida de Gato", entre outros), 26, estará no caixa, conferindo as comandas. É a gerente. "Não, ela é a primeira-dama do bar", explica Serodio, referindo-se ao fato de Clarah ser casada com outro dos donos.
No meio de uma rua que fica deserta à noite, o bar mostra atitude. Há a letra "bê" num escudo de néon como placa. Há uma sala de estar no meio da entrada. Há o pôster que anuncia a apresentação de Lou Reed no Supper Club nova-iorquino no dia 26 de junho (não diz o ano; foi em 1997, ele cantou "Satellite of Love").
Há a pichação "I am the loud sound of fun when you're trying to sleep" (eu sou o som alto da diversão quando você tenta dormir, em inglês, uma inversão de uma letra do grupo Modest Mouse), entre outras, num dos banheiros. Não há placas que indiquem masculino ou feminino. Ninguém parece se importar com isso.
Atitude. Por mais que a palavra soe gasta, este parece ser o diferencial dos bares da região, ontem como hoje. O D-Edge, próximo ao Memorial da América Latina, já passa dos dois anos e continua lotando. É um club, não um bar, ganhou público por trazer DJs estrangeiros e foi eleito o quarto melhor do mundo pela edição de novembro da "bíblia" do gênero, a revista britânica "Mixmag".
Já foi o Stereo, mas "há muito tempo, no ano 2000", informa um dos balconistas. O que ele mais vende é catuaba com gelo, bebida de fama afrodisíaca, mas aqui solicitada por suas propriedades não-alcoólicas, que, assim como o RedBull, pegam bem se consumidas com uma substância ilegal.
"O D-Edge é chato, já fui duas vezes mas me perdi, é difícil de achar", diz a atriz Maria Manoella, 27, que estará em janeiro nas minisséries "JK" (Globo) e "Carnaval" (HBO) e no longa "Crime Delicado", de Beto Brant. "Mas tenho percebido essa movimentação em relação à Barra Funda."
Nessa movida não está Leo Jaime, músico-símbolo dos anos 80, que recobrou a fama recentemente pela qualidade da música que faz, pela simpatia e por conta do site de relacionamentos Orkut. "Os antigos eu adorava, os novos eu não manjo", resume, por e-mail. "Não sou muito de balada."
Mas era. Há performances dele com a sua banda de então, João Penca & seus Miquinhos Amestrados, em 1984, no Radar Tantã, que quem viu não esquece. Todos se vestiam de marinheiro. As tietes (equivalente histórico a "fãs"), também. Num dos shows, o autor Marcelo Rubens Paiva, 46, se viu cercado delas. "Sentado na minha cadeira de rodas, perto do palco, me sentia um destróier."
A noite de inauguração teve show do grupo Brilho, de Claudio "A Noite Vai Ser Boa" Zoli. A fila atravessava o viaduto. "Em 15 dias recuperamos o investimento", lembra Maria Helena Guimarães (depois criadora do Ritz, do Spot). "Todo mundo tocou lá, de Paralamas a Legião. Nós lançamos o Lulu Santos lá."
Taciana Barros, que se apresentou com seu grupo, o Gang 90, lembra que na mesma rua do Tantã ficava uma lojinha da Kaos Brasilis, "que vestia todo mundo na época" e tinha uma "filial" na danceteria. "Foi num mezzanino/cama dessa loja que os Titãs compuseram "Sonífera Ilha"."
O Projeto SP, que já fazia sucesso em outro lugar, na esquina das ruas Augusta e Caio Prado, mudou-se para a Barra Funda no final de 1987. "Fui pelo preço do metro quadrado, barato", lembra o sócio Arnaldo Waligora, 51.
O galpão onde ficava o Radar Tantã já foi sede de grife de roupas, abrigou uma produtora de cinema e hoje é a ONG do apresentador de TV Luciano Huck, o Instituto Criar.


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