|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MUDANÇA DE RUMO
Bares como Casa Belfiori, Berlin e D-Edge fazem fervilhar bairro que já abrigou o Radar Tantã e o Projeto SP
Noite da Barra Funda revê pico dos anos 80
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Cazuza está no banheiro do Radar Tantã cheirando cocaína. É
1985. O resto dos integrantes do
Barão Vermelho bate na porta para que ele saia e venha cantar para
uma multidão cada vez mais ansiosa. Ele não responde, ou responde com frases desconexas.
Até que Roberto Frejat, seu parceiro, perde a paciência e empurra com força a porta. Esta cede e
atinge o músico, que começa a
sangrar. Os mais novos devem se
lembrar da cena da cinebiografia
"O Tempo Não Pára", de 2004.
Sofia Carvalhosa lembra-se por
ter estado lá. Foi quem levou Cazuza (1958-1990) ao hospital. "Fomos ao pronto-socorro de fraturas da Lapa", diz. Então com 24
anos, a assessora de imprensa era
hostess do Radar Tantã. "Hostess,
produtora cultural, assessora."
"Tudo" acontecia na "danceteria" (equivalente histórico a
"club") da Barra Funda, que reunia de anônimos ao restaurateur
Rogério Fasano, de futuros alguéns ao designer Carlos Mota.
A vida noturna do bairro paulistano vem em ondas como o mar
da poesia de Vinicius de Moraes
(1913-1980). A mais importante é
do meio dos anos 80, quando o
Radar Tantã foi inaugurado e era
o farol, seguido depois pela segunda versão do Projeto SP.
A atual tem como centro a Casa
Belfiori, também conhecida como
Porcão ou Bar do Rock, ao redor
do qual orbitam o Berlin e o D-Edge. A diferenciar os momentos,
o fato de que o atual mostra-se
mais longevo e se move mais ao
centro da Barra Funda -o da década retrasada foi efêmero e englobava também nacos do Bom
Retiro e outros bairros-limítrofe.
Ninguém sabe dizer o motivo
de tal renascimento e longevidade
-assim como não há teorias sobre o porquê de, de tempos em
tempos, a zona central ser "redescoberta" pela noite. Cansaço dos
bares e bairros da moda, talvez.
"Talvez sejam pessoas cheias da
Vila Madalena", arrisca Diego
Belda, 30, um dos donos da Belfiori, morador da Barra Funda,
enquanto serve um pint (diga
"páint", ou 473,176 ml) de Guinness, a cerveja escura irlandesa
que é marca registrada do bar.
São marcas também as paredes
vermelhas, o veludo preto na porta, a luz vermelha a iluminar a esquina, encimada pela data de
construção do prédio, 1925, e o
nome do primeiro estabelecimento que ali funcionou, um armazém de secos & molhados.
Com ele concorda Guilherme
Fazan, 24, publicitário, encostado
no balcão, os restos do que comeu
sobre um aparador de pratos que
é o pôster do filme brasileiro "Lua
de Mel e Amendoim", de 1971,
com Renata Sorrah e José Lewgoy. "Toda vez que entro aqui,
penso: "É aqui!'", resume.
Outro motivo é o preço do aluguel, ainda razoável. Pelo menos é
o que diz Jonas Serodio, 24, um
dos donos do Berlin, em funcionamento desde o meio do ano,
primeiro subproduto da popularidade da Belfiori, que é de outubro de 2003. "Nós queríamos uma
casa barata, fora do circuito", diz.
O Berlin ainda está pegando,
mas já tem noites populares. Seja
qual for o dia, porém, a escritora
Clarah Averbuck ("Vida de Gato", entre outros), 26, estará no
caixa, conferindo as comandas. É
a gerente. "Não, ela é a primeira-dama do bar", explica Serodio, referindo-se ao fato de Clarah ser
casada com outro dos donos.
No meio de uma rua que fica deserta à noite, o bar mostra atitude.
Há a letra "bê" num escudo de
néon como placa. Há uma sala de
estar no meio da entrada. Há o
pôster que anuncia a apresentação de Lou Reed no Supper Club
nova-iorquino no dia 26 de junho
(não diz o ano; foi em 1997, ele
cantou "Satellite of Love").
Há a pichação "I am the loud
sound of fun when you're trying
to sleep" (eu sou o som alto da diversão quando você tenta dormir,
em inglês, uma inversão de uma
letra do grupo Modest Mouse),
entre outras, num dos banheiros.
Não há placas que indiquem masculino ou feminino. Ninguém parece se importar com isso.
Atitude. Por mais que a palavra
soe gasta, este parece ser o diferencial dos bares da região, ontem
como hoje. O D-Edge, próximo
ao Memorial da América Latina,
já passa dos dois anos e continua
lotando. É um club, não um bar,
ganhou público por trazer DJs estrangeiros e foi eleito o quarto
melhor do mundo pela edição de
novembro da "bíblia" do gênero,
a revista britânica "Mixmag".
Já foi o Stereo, mas "há muito
tempo, no ano 2000", informa um
dos balconistas. O que ele mais
vende é catuaba com gelo, bebida
de fama afrodisíaca, mas aqui solicitada por suas propriedades
não-alcoólicas, que, assim como o
RedBull, pegam bem se consumidas com uma substância ilegal.
"O D-Edge é chato, já fui duas
vezes mas me perdi, é difícil de
achar", diz a atriz Maria Manoella, 27, que estará em janeiro nas
minisséries "JK" (Globo) e "Carnaval" (HBO) e no longa "Crime
Delicado", de Beto Brant. "Mas
tenho percebido essa movimentação em relação à Barra Funda."
Nessa movida não está Leo Jaime, músico-símbolo dos anos 80,
que recobrou a fama recentemente pela qualidade da música que
faz, pela simpatia e por conta do
site de relacionamentos Orkut.
"Os antigos eu adorava, os novos
eu não manjo", resume, por e-mail. "Não sou muito de balada."
Mas era. Há performances dele
com a sua banda de então, João
Penca & seus Miquinhos Amestrados, em 1984, no Radar Tantã,
que quem viu não esquece. Todos
se vestiam de marinheiro. As tietes (equivalente histórico a "fãs"),
também. Num dos shows, o autor
Marcelo Rubens Paiva, 46, se viu
cercado delas. "Sentado na minha
cadeira de rodas, perto do palco,
me sentia um destróier."
A noite de inauguração teve
show do grupo Brilho, de Claudio
"A Noite Vai Ser Boa" Zoli. A fila
atravessava o viaduto. "Em 15
dias recuperamos o investimento", lembra Maria Helena Guimarães (depois criadora do Ritz, do
Spot). "Todo mundo tocou lá, de
Paralamas a Legião. Nós lançamos o Lulu Santos lá."
Taciana Barros, que se apresentou com seu grupo, o Gang 90,
lembra que na mesma rua do
Tantã ficava uma lojinha da Kaos
Brasilis, "que vestia todo mundo
na época" e tinha uma "filial" na
danceteria. "Foi num mezzanino/cama dessa loja que os Titãs
compuseram "Sonífera Ilha"."
O Projeto SP, que já fazia sucesso em outro lugar, na esquina das
ruas Augusta e Caio Prado, mudou-se para a Barra Funda no final de 1987. "Fui pelo preço do
metro quadrado, barato", lembra
o sócio Arnaldo Waligora, 51.
O galpão onde ficava o Radar
Tantã já foi sede de grife de roupas, abrigou uma produtora de cinema e hoje é a ONG do apresentador de TV Luciano Huck, o Instituto Criar.
Texto Anterior: Há 50 anos Próximo Texto: Localização estratégica atrai universidades Índice
|