São Paulo, terça-feira, 11 de dezembro de 2007

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RUBEM ALVES

Sobre a paixão

Sem os desentendimentos, retorna o amor que toca a memória com a vara mágica do esquecimento

O APAIXONADO NÃO consegue pensar sobre a sua paixão. Porque o pensamento exige que se tome distância da coisa pensada, que aquele que pensa esteja na posição de um observador que olha de fora. Mas o apaixonado está inundado pelo sentimento. Tudo o que pensa são pensamentos apaixonados e não pensamentos sobre a sua paixão.

 

A vida era um inferno de brigas. A memória estava lotada com cenas de desamor. A razão aconselhava: "O melhor é a separação". E o coração concordava, pois nas brigas não existe o amor. A separação aconteceu. Com a separação vem a distância -e à distância os desentendimentos não mais acontecem. Sem os desentendimentos, retorna o amor que toca a memória com a vara mágica do esquecimento. E o esquecimento apaga da memória todas as brigas e ilumina as cenas de amor e ternura que estavam na sombra. E a paixão retorna. E tudo se repete.
 

O que dói mais? A morte da pessoa amada ou a partida da pessoa amada? Digo que é a partida da pessoa amada. Porque a morte, ao matar a pessoa amada no momento mesmo do amor, eterniza o amor; congela, na imaginação, o abraço. Esse abraço pode se transformar numa foto que se pendura na parede. Ela ficará lá, imóvel, para sempre. A partida da pessoa amada, ao contrário, rasga todas as fotografias do abraço. Cada foto de abraço se transforma numa dor. E o que resta na foto? A pessoa abandonada, sozinha, com a pergunta: "Por onde andará?"
 

Ele vinha de uma prolongada relação com uma mulher separada do marido. Era uma relação agradável e sem brigas, mas também sem grandes paixões, igual a todas as relações tocadas pela rotina. Um dia ele chegou transfigurado para sua sessão de psicanálise. "Encontrei a mulher da minha vida!", disse. E passou a descrever sua nova experiência de paixão. Estava decidido a abandonar a companheira com quem vivia. Mas não queria magoá-la por gostar muito dela. Imaginou então uma mentira. Chegaria para ela e diria: "Meu bem, tenho estado observando você, seu olhar perdido, seu desinteresse pelos beijos... Fico imaginando que talvez você tenha saudades do marido e queira voltar... Não seria sábio a gente dar um tempo para a nossa relação?" Na semana seguinte ele retornou transtornado. Fizera o que planejara. Mas, dita a mentira, foi isso que sua mulher lhe disse: "Mas como você é sensível! Como é que percebeu?" Que coincidência feliz! Era ela que o estava abandonando para voltar para o marido!
Podia então entregar-se à nova paixão sem sentimentos de culpa! Mas não foi isso que ele sentiu. Instantaneamente, se esqueceu da paixão nova e ficou dilacerado de amor pela mulher que o deixava. Como explicar essa transformação absurda e imediata? Na cena que imaginara, era ele que partia e ela que ficava. Mas as palavras da mulher inverteram a cena: era ela que partia e ele que ficava. A paixão não vive de pessoas; ela vive de cenas.
 

"Ajoelhado à sua cabeceira ocorrera-lhe a idéia de que ela viera para ele numa cesta sobre as águas. Já disse que as metáforas são perigosas. O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética" (Milan Kundera, "A insustentável leveza do ser")


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