São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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Noveleiros sim, e daí?

Apesar de 40% do público de novelas ser formado por homens, poucos admitem que seguem as tramas por causa do medo de serem tachados de pouco viris

ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA

Luís Roberto Lopes passa o dia disparando golpes como "armlock" (chave de braço) e mata-leão (estrangulamento). À noite, o professor de jiu-jitsu e muay thai, o boxe tailandês, troca o tatame pelo sofá. Golpe só com os dedos, para aumentar ou abaixar o som da televisão em seu momento de sossego doméstico: a hora de assistir a "Belíssima".
Em matéria de novela, pode-se brincar que Luiz, 34, é um bofe que saiu do armário. Bofe é a forma como os gays se referem a homens másculos, fortes. O jargão gay para héteros pode parecer provocação -e é. Mas não aos personagens desta reportagem, que aqui se assumem sem problemas como noveleiros convictos, e sim à maioria masculina que teme admitir publicamente o gosto.
O público masculino representa 38% da audiência de "Belíssima" (e 34% de "Alma Gêmea") em São Paulo, conforme o Ibope. Nas qualitativas da rede, as mulheres também relatam o maior interesse dos maridos. "O homem sempre assistiu à novela, mas dizia que ficava na sala depois do jornal "fazendo companhia à mulher" ou "esperando o programa seguinte'", afirma Eneida Nogueira, diretora de pesquisa da Globo. "Hoje esse quadro mudou. Ao selecionar telespectadores para pesquisas de opinião, passamos eventualmente a montar grupos compostos só de homens."
Mas na vida real ainda é difícil achar marmanjos que falem confortavelmente a respeito. Durante a produção desta reportagem, sete noveleiros cancelaram a entrevista com medo de serem gozados pelos amigos e tachados de, digamos, pouco viris.
Luís, o lutador, assume sem nenhum constrangimento. Para não perder um capítulo da trama de Silvio de Abreu, ele remaneja como pode sua agenda. Só não segue o folhetim à risca quando o assunto é trabalho. Três semanas atrás, enquanto se atracava com outros lutadores durante uma aula, a cerca de 20 metros dali, as 14 esteiras diante da TV da academia eram disputadas pelos alunos.
O capítulo daquela noite reservava um dos desfechos mais esperados de "Belíssima", quando a heroína Júlia (Glória Pires) flagrava, na própria cama do casal, o marido (Marcello Anthony) e a filha de um casamento anterior dela, Érica (Letícia Birkheuer).
O professor não ficou a ver tatames: sua mãe, Neuza, 70, gravou o capítulo para ele. "Deu tempo de assistir quando cheguei e ainda comentar com ela no café da manhã", conta.
Luís diz que, na noite anterior, até se sentiu tentado a atravessar o corredor da galera de jiu-jitsu para dar uma espiadela na cena, mas desistiu. "Seria motivo de gozação. Para eles, novela ainda é coisa de mulher ou de veado."
Filho de gaúcho com japonesa, o publicitário Vinícius Ruriki, 26, diz que aderiu às novelas em "Araponga" (de Dias Gomes, 1990). "Novela não é um produto feminino. Na verdade, manter-se informado sobre elas até ajuda na hora do xaveco. Acho que o preconceito contra quem vê não existe mais nos dias de hoje."
Um otimista esse Vinícius. "Não importa a classe social ou o nível intelectual. Assumir que é noveleiro dá motivo para te sacanearem", relata o também publicitário Leonardo Corvo, 32, único filho homem numa família de quatro mulheres. "Os amigos já sabem. Só desço para a praia depois que acaba a novela.
Noveleiros, autores e estudiosos compartilham da opinião de que as novelas estão ganhando espaço entre os homens por tratarem de temas como homossexualismo e racismo, que geram discussão, ajudam a romper preconceitos e ampliam o pensamento do telespectador médio brasileiro. "Cada vez mais, as produções estão desvinculadas do estereótipo do gênero por abordar questões atuais que interferem no dia-a-dia do telespectador", acredita Mauro Alencar, 43, doutor em teledramaturgia pela USP e autor do livro "A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil".
O operador da BM&F Aparecido João da Silva, 38, conhecido no pregão como Greg, concorda, citando como exemplos a questão do casal de lésbicas, em "Senhora do Destino", ou o michê, a miscigenação e o universo de empreendedores em "Belíssima". São assuntos, diz ele, que alimentam as conversas com a sua mulher, a universitária Luciana, 30.
Para a pesquisadora Maria Lourdes Motter, do Núcleo de Telenovelas da ECA-USP, a imagem da telenovela foi revista e valorizada como reflexo de um movimento sociológico maior: a reconfiguração do papel feminino. "Antes, a mulher era vista como subalterna, seu gosto era discriminado. Hoje, como ocupa uma posição de menor desigualdade, o que se convencionou a chamar de "programa de mulher" não faz mais sentido. É datado."


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