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depoimento
Não há abraços nesta redoma de temor e culpa
FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL
Sempre vi com sarcasmo a
tal teoria do abraço: abrace
não sei quantas pessoas por
dia e terá uma vida mais plena. Mas fui obrigada a rever
meu conceito: a abstinência
de abraços e cumprimentos
com beijos, no dever cívico-sanitário de evitar a possível
transmissão do vírus da gripe A (H1N1), está longe de
ser uma experiência agradável, ainda que me faça rir.
Uma semana após passar
pelo hospital Emílio Ribas,
como repórter, lá estava eu
na quinta-feira. No dia anterior, voltara, aparentemente
sã, da minha curta passagem
pela Cidade do México para
relatar o transe da megalópole acossada pelo surto.
Mas foi só contar sobre a
minha temporada fora e a
atendente me ofereceu uma
máscara cirúrgica. Eu ri. Ela
ouviu quando eu disse que
não tinha sintomas?
Fui atendida rapidamente,
mas, como faz todo sentido
a determinação do Ministério da Saúde de só fazer
testes em quem apresenta
sintomas, saí de lá com a
mesma incerteza -a que incomoda amigos, família e colegas de trabalho- que
eu carregava ao chegar.
Saí ainda com a recomendação de ser prudente: evitar
aglomerações, lavar as mãos
muito mais vezes do que costumo, observar sintomas e,
claro, evitar os tais cumprimentos mais chegados. Vida
normal? Não tão rápido...
Arrastei para minha redoma de temor e culpa os dois
amigos com os quais divido
apartamento. Um espirro comum numa casa com fumante -eu- na cidade poluída
famosa por sua amplitude
térmica deixou de ser algo
tão corriqueiro e inocente.
Resgatamos do fundo da
caixinha de remédios o termômetro e, entre risos, descartamos febres durante o
fim de semana.
A doença parece ser menos
agressiva, pelo menos até
agora, mas eu lembro bem da
angústia de familiares com
parentes com a gripe A internados no México.
O vírus é novo e ainda imprevisível, e não posso simplesmente dar de ombros ante à obsessão ideal de controle, de resto provavelmente
ineficaz, sobre o grande número de pessoas que chega
do México, dos EUA, da Europa ou de quase qualquer
lugar a esta altura dos fatos.
Espero os famigerados dez
dias de observação passarem
para eu me iludir pensando
que sou totalmente dona do
meu corpo de novo. Muito
Foucault (o filósofo do biopoder) para poucos dias.
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