São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

O coração esquece?

O tempo e o uso muitas vezes nos tiram a noção do sentido original das palavras, mas, quando se volta a ele...

NO "PROFISSÃO REPÓRTER", programa apresentado pelo brilhante jornalista Caco Barcellos, o assunto é o transplante de coração. Roberto Pereira da Silva, paciente que espera a vez de receber um "novo" órgão, diz à jovem repórter que o entrevista que a mulher dele "está com medo que depois que eu coloque o coração eu não goste mais dela". Chorando, a comovida (e comovente) mulher de Roberto (Silvana Pereira) confirma. Roberto diz que "o coração, tudo bem; o mais importante é a minha mente".
A aparente ou real ingenuidade do casal me fez pensar na expressão "de cor", que todos usamos quando queremos dizer que temos na memória determinado texto, lista, ordem das coisas, número de telefone etc. No verbete "cor" (não o que se refere ao singular de "cores", cujo "o" é fechado), o dicionário "Houaiss" apresenta esta definição (precedida da expressão "diacronismo: antigo"): "O coração". Cumpre lembrar que, de acordo com os dicionários, essa palavra "cor" (insisto: a que tem o "o" aberto, e não aquela que se refere ao colorido, à coloração) só é usada na expressão "de cor" ("saber de cor", "dizer de cor", "recitar de cor" etc.).
"Cor" vem do latim "cor", que deu em italiano "cuore" e em francês "coeur". O "Aurélio" diz que "coração" também vem de "cor" ("possivelmente com sufixo aumentativo de reforço"). O "Houaiss" diz que a origem de "coração" é controvertida, mas que provavelmente vem do latim vulgar "coratione", "formado a partir do latim cor, cordis". Em seguida, o "Houaiss" chega ao xis do problema, ao traduzir o latim "cor" por "coração, como sede, centro da alma, da inteligência e da sensibilidade". Entendeu, caro leitor, por que quem sabe de cor sabe de cor?
Por falar nisso, em inglês "de cor" é "by heart" ("heart" é "coração"). E não é que os ingênuos temores da doce Silvana têm fundamento?
Não resisto à tentação de lembrar um antológico poema de Cassiano Ricardo ("Ladainha", de "Jeremias Sem-Chorar", de 1964): "Por que o raciocínio / os músculos, os ossos? / A automação, ócio dourado. / O cérebro eletrônico, o músculo / mecânico / mais fáceis que um sorriso. / Por que o coração? / O de metal não tornará o homem / mais cordial, / dando-lhe um ritmo extra- / corporal? / Por que levantar o braço / para colher o fruto? / A máquina o fará por nós. /
Por que labutar no campo, na cidade? / A máquina o fará por nós. / Por que pensar, imaginar? / A máquina o fará por nós. / Por que fazer um poema? / A máquina o fará por nós. / Por que subir a escada de Jacó? / A máquina o fará por nós. / Ó máquina, orai por nós".
Sobre ser premonitório, o poema é moderníssimo, não? Pois bem, caro leitor. A passagem "Por que o coração? / O de metal não tornará o homem / mais cordial, / dando-lhe um ritmo extra- / corporal?"
torna-se mais clara e compreensível quando se sabe que "cordial" é da mesma família de "cor, cordis", ou seja, diz respeito ao coração.
O tempo e o uso muitas vezes nos tiram a noção do sentido original das palavras, mas, quando se volta a ele, podem-se descobrir maravilhas. O poema do grande Cassiano Ricardo é prova viva disso, não?
Vida longuíssima ao belo casal Roberto e Silvana Pereira! Cordialmente, isto é, de coração. É isso.


inculta@uol.com.br

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