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PASQUALE CIPRO NETO
O coração esquece?
O tempo e o uso muitas vezes nos tiram a noção do sentido original das palavras, mas, quando se volta a ele...
NO "PROFISSÃO REPÓRTER",
programa apresentado pelo
brilhante jornalista Caco
Barcellos, o assunto é o transplante
de coração. Roberto Pereira da Silva,
paciente que espera a vez de receber
um "novo" órgão, diz à jovem repórter que o entrevista que a mulher dele "está com medo que depois que eu
coloque o coração eu não goste mais
dela". Chorando, a comovida (e comovente) mulher de Roberto (Silvana Pereira) confirma. Roberto diz
que "o coração, tudo bem; o mais importante é a minha mente".
A aparente ou real ingenuidade do
casal me fez pensar na expressão "de
cor", que todos usamos quando queremos dizer que temos na memória
determinado texto, lista, ordem das
coisas, número de telefone etc. No
verbete "cor" (não o que se refere ao
singular de "cores", cujo "o" é fechado), o dicionário "Houaiss" apresenta esta definição (precedida da expressão "diacronismo: antigo"): "O
coração". Cumpre lembrar que, de
acordo com os dicionários, essa palavra "cor" (insisto: a que tem o "o"
aberto, e não aquela que se refere ao
colorido, à coloração) só é usada na
expressão "de cor" ("saber de cor",
"dizer de cor", "recitar de cor" etc.).
"Cor" vem do latim "cor", que deu
em italiano "cuore" e em francês
"coeur". O "Aurélio" diz que "coração" também vem de "cor" ("possivelmente com sufixo aumentativo
de reforço"). O "Houaiss" diz que a
origem de "coração" é controvertida, mas que provavelmente vem do
latim vulgar "coratione", "formado a
partir do latim cor, cordis". Em seguida, o "Houaiss" chega ao xis do
problema, ao traduzir o latim "cor"
por "coração, como sede, centro da
alma, da inteligência e da sensibilidade". Entendeu, caro leitor, por
que quem sabe de cor sabe de cor?
Por falar nisso, em inglês "de cor" é
"by heart" ("heart" é "coração"). E
não é que os ingênuos temores da
doce Silvana têm fundamento?
Não resisto à tentação de lembrar um antológico poema de Cassiano Ricardo ("Ladainha", de "Jeremias Sem-Chorar", de 1964):
"Por que o raciocínio / os músculos, os ossos? / A automação, ócio
dourado. / O cérebro eletrônico, o
músculo / mecânico / mais fáceis
que um sorriso. / Por que o coração? / O de metal não tornará o homem / mais cordial, / dando-lhe
um ritmo extra- / corporal? / Por
que levantar o braço / para colher o
fruto? / A máquina o fará por nós. /
Por que labutar no campo, na cidade? / A máquina o fará por nós. /
Por que pensar, imaginar? / A máquina o fará por nós. / Por que fazer um poema? / A máquina o fará
por nós. / Por que subir a escada de
Jacó? / A máquina o fará por nós. /
Ó máquina, orai por nós".
Sobre ser premonitório, o poema
é moderníssimo, não? Pois bem,
caro leitor. A passagem "Por que o
coração? / O de metal não tornará
o homem / mais cordial, / dando-lhe um ritmo extra- / corporal?"
torna-se mais clara e compreensível quando se sabe que "cordial" é
da mesma família de "cor, cordis",
ou seja, diz respeito ao coração.
O tempo e o uso muitas vezes nos
tiram a noção do sentido original
das palavras, mas, quando se volta
a ele, podem-se descobrir maravilhas. O poema do grande Cassiano
Ricardo é prova viva disso, não?
Vida longuíssima ao belo casal
Roberto e Silvana Pereira! Cordialmente, isto é, de coração. É isso.
inculta@uol.com.br
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