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Em busca do glamour perdido
LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Houve um tempo, e não faz
muito, em que São Paulo era pequena, pelo menos no que se referia ao mundo das artes, da cultura
ou mesmo da moda chique.
Antes dos Jardins, afirma o artista plástico e ex-diretor da Pinacoteca do Estado, Emanoel Araújo, o que importava há 40 anos era
o pedaço da cidade que ficava do
outro lado do viaduto do Chá.
Avenidas Ipiranga, São João,
ruas Barão de Itapetininga, Sete
de Abril, 24 de Maio e, sobretudo,
praça da República e avenida São
Luiz encerravam o que havia de
mais importante para o paulistano "in" dos anos 50 e 60. Dos lendários bares Brahma e Jeca às lojas chiques Old England e For
Men, passando pela Casa Manon,
de instrumentos musicais, Breno
Rossi, de discos, à livraria Francesa, entre outros points, havia todo
um roteiro cultuado, que se opunha à badalação "moderninha"
da rua Augusta e à engajada Maria Antônia.
Foi em meio ao movimento das
galerias de arte, livrarias, lojas de
disco ou de roupas de bom gosto e
dos bares da moda que o então jovem artista baiano Emanoel
Araújo tomou contato com São
Paulo, em 1963, quando aqui chegou com uma carta de apresentação do amigo Jorge Amado.
Eram tempos de glamour e de
intensa atividade cultural que cativaram para sempre o artista, 30
anos depois agraciado com o título de cidadão honorário da cidade
que o acolheu e da qual se tornou
um morador/espectador.
Espectador porque, do alto do
seu apartamento dúplex localizado no último andar do edifício
São Luiz, aquele em estilo francês
que fica exatamente em frente ao
edifício Itália, Emanoel -hoje artista, agitador cultural e curador
de arte consagrado nacionalmente- abrange com o olhar toda a
praça da República, o conjunto
arquitetônico do colégio Caetano
de Campos, atual Secretaria da
Educação, e a linha de prédios das
avenidas Ipiranga e São Luiz.
É diante dessa paisagem hoje
um tanto turbulenta demais, mas
que volta a despertar o interesse
daqueles que querem morar bem,
que ele confessa, entre irônico e
melancólico: "Foi um ledo engano. Voltei para cá, sem pretensões
proustianas, em busca de um
tempo perdido. Mas esse tempo
não existe mais..."
Emanoel fala de volta porque
houve muitas idas e vindas. A visita de 63 foi a primeira de uma série que se estendeu até os anos 70,
na qual ele se hospedava basicamente na casa do gravador Odeto
Guersoni, na avenida Angélica, e
mantinha, nas cercanias da República, contato com o grupo de intelectuais formados por Clóvis
Graciano, Luís Martins, José Paulo Paes, Nelson Palma Travassos e
Dinah Lopes Coelho, entre outros. "Era um pessoal ligado em
ficção científica; tudo era fantasia,
e, às vezes, escapava à minha
compreensão", diz ele.
No mundo do concreto, no entanto, ocorreu o relacionamento
profissional mais estreito com o
pintor Aldo Bonadei e com os tapeceiros Roberto Nicola e Jacques
Douchez.
Pouca gente sabe, afirma Emanoel, mas o Bonadei costumava
expor quadros aos domingos na
praça da República. Ou seja, o
consagrado pintor brasileiro foi
um precursor da feira hippie que
ali sobrevive até hoje.
Quanto a Nicola, este passou a
abrigar Emanoel em suas vindas à
cidade no imponente casarão da
alameda Glete. "É uma construção muito bonita, típica da arquitetura de Campos Elíseos, que era
muito chique. A família de Nicola
possuía outras edificações no
bairro, e nelas havia os maravilhosos ornatos em gesso ou cimento feitos pelo avô do Nicola,
um italiano muito talentoso."
Com as visitas frequentes, a vida
de Emanoel foi se organizando
em São Paulo, as exposições de
seus trabalhos se sucedendo ao
longo de toda a década de 60. Ao
passar a se hospedar nos Campos
Elíseos, Emanoel ficou ainda mais
perto do quadrilátero que o interessava de verdade, que era o do
entorno da praça da República.
"São Paulo, àquela época, era
incrivelmente provinciana, se resumia à região da República e da
avenida São Luiz", relembra.
Sobretudo, afirma, a São Paulo
da intelectualidade ligada às artes
plásticas e à literatura, que gravitava em torno da galeria Atrium,
no Conjunto Zarvos, esquina da
São Luiz com a rua da Consolação; da galeria São Luiz, comandada por Ana Maria Fiocca na
própria avenida, mas perto do
edifício Itália, ou a galeria de Pola
Rezende, na rua da Consolação.
Além da livraria Kosmos, instalada na galeria Metrópole, do outro
lado da São Luiz. Tudo isso na sugestiva vizinhança da biblioteca
Mário de Andrade, na praça Dom
José Gaspar.
Também vizinho, mas nem tanto, sempre esteve o Teatro Municipal, ao lado do qual funcionava
a galeria Astréia, para Emanoel a
mais influente daquele período.
"A todo instante você encontrava nesses locais gente decisiva para a movimentação da cultura da
cidade, como o José Mindlin [industrial, colecionador e bibliófilo], o Hércules Barsotti, o Clóvis
Graciano ou o Willys de Castro
[artistas plásticos]. Isso sem falar
que os dois críticos mais importantes da época, o Quirino da Silva e o José Geraldo Vieira, moravam na rua Sete de Abril e na Vieira de Carvalho, também naquele
trajeto."
Um trajeto do qual Emanoel se
afastou em 1971, quando, contagiado pelo clima de "eu quero
uma casa no campo" da canção
que seria popularizada por Elis
Regina nos anos seguintes, acabou indo morar em Taboão da
Serra, município vizinho de São
Paulo.
Quase uma década se passou até
que ele "enjoasse de tanta clorofila" e retornasse, agora para um
apartamento na própria São Luiz,
próximo à esquina da Ipiranga,
em oposição ao edifício Itália e,
portanto, ao prédio em que reside
hoje. Mas acabou ficando por ali
apenas dois anos, mudando-se
em seguida para o Bexiga, fixando
residência e ateliê na rua dos Ingleses. Mais uma vez instigado
por Bonadei, Emanoel se voltou,
assim como o pintor, para as
questões urbanas sugeridas pelo
próprio perfil daquele bairro de
casario irregular.
Ele ainda estava no Bexiga
quando, em 92, estabeleceu um
novo e decisivo pólo de atuação,
na Pinacoteca do Estado.
Nos dez anos que se seguiram,
até deixar o posto em 2002, Emanoel construiu uma das mais elogiadas carreiras de diretor de órgão público voltado para a cultura
da cidade. Num trabalho de dedicação intensa e integral, como ele
ressalta, colocou a Pinacoteca em
evidência e a projetou internacionalmente, sobretudo com a histórica primeira mostra de obras do
escultor francês Auguste Rodin,
realizada em 95, que levou para o
então acanhado museu ao menos
150 mil espectadores.
Uma façanha que redundaria
na reforma completa do prédio,
conduzida pelo consagrado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, e
em outra exposição de Rodin, que
desta vez atrairia 220 mil pessoas
à Pinacoteca, hoje um espaço afinado com os mais modernos conceitos de museologia do mundo.
Ao deixar a Pinacoteca, motivado também pelo desgaste físico
que seu trabalho na instituição
acabou gerando, Emanoel não teve dúvida: estava na hora de voltar para "a cidade", ou seja, para o
seu pedaço na República.
"Eu não tinha esgotado meu
tempo ali, sentia sempre uma espécie de nostalgia. Mas quando
resolvi voltar, levei um susto, não
tinha me dado conta de como a cidade tinha ficado à margem da
minha observação."
Mesmo assim, passado o primeiro impacto e feito o negócio
que o levou aos dois últimos pisos
do edifício São Luiz, ele não se
furtou a olhar de forma carinhosa
o que via de sua janela. "Este centro é o lugar onde identifico a cultura da cidade, a arquitetura como presença do homem. Veja o
prédio do Caetano de Campos, os
edifícios, a pintura da zebra do
Cláudio Tozzi no alto do edifício
perto da Barão de Itapetininga...
Na verdade, a cidade da minha
memória não acabou, o arcabouço emblemático continua todo
aqui. Claro que não há mais a intimidade de andar calmamente na
rua, encontrar as pessoas. A violência, inclusive estética, é uma
realidade."
Sobre a tão propalada revitalização daquela região, com a valorização imobiliária dos grandes
apartamentos da avenida São
Luiz, hoje muito procurado por
artistas e profissionais liberais,
Emanoel elucubra: "A cidade ficou tão agigantada que esse ponto
de passagem deixou definitivamente de ser o que era. Perdeu
aquela coisa elegante que tinha,
com a criação do absurdo "centro
novo" e a instalação do maldito
calçadão, que terminou dominado pelos camelôs."
A esperança de Emanoel é que
esse movimento de retorno de artistas e formadores de opinião
àquele pedaço da cidade possa
ajudar a recuperar a "dignidade
da região". Uma região que tem
lugar garantido na memória de
Emanoel Araújo e na própria trajetória de São Paulo.
Visite o site dos 450 anos de São Paulo na
www.folha.com.br/especial/2003/saopaulo450
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