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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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Em busca do glamour perdido

LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Houve um tempo, e não faz muito, em que São Paulo era pequena, pelo menos no que se referia ao mundo das artes, da cultura ou mesmo da moda chique.
Antes dos Jardins, afirma o artista plástico e ex-diretor da Pinacoteca do Estado, Emanoel Araújo, o que importava há 40 anos era o pedaço da cidade que ficava do outro lado do viaduto do Chá.
Avenidas Ipiranga, São João, ruas Barão de Itapetininga, Sete de Abril, 24 de Maio e, sobretudo, praça da República e avenida São Luiz encerravam o que havia de mais importante para o paulistano "in" dos anos 50 e 60. Dos lendários bares Brahma e Jeca às lojas chiques Old England e For Men, passando pela Casa Manon, de instrumentos musicais, Breno Rossi, de discos, à livraria Francesa, entre outros points, havia todo um roteiro cultuado, que se opunha à badalação "moderninha" da rua Augusta e à engajada Maria Antônia.
Foi em meio ao movimento das galerias de arte, livrarias, lojas de disco ou de roupas de bom gosto e dos bares da moda que o então jovem artista baiano Emanoel Araújo tomou contato com São Paulo, em 1963, quando aqui chegou com uma carta de apresentação do amigo Jorge Amado.

Eram tempos de glamour e de intensa atividade cultural que cativaram para sempre o artista, 30 anos depois agraciado com o título de cidadão honorário da cidade que o acolheu e da qual se tornou um morador/espectador.
Espectador porque, do alto do seu apartamento dúplex localizado no último andar do edifício São Luiz, aquele em estilo francês que fica exatamente em frente ao edifício Itália, Emanoel -hoje artista, agitador cultural e curador de arte consagrado nacionalmente- abrange com o olhar toda a praça da República, o conjunto arquitetônico do colégio Caetano de Campos, atual Secretaria da Educação, e a linha de prédios das avenidas Ipiranga e São Luiz.
É diante dessa paisagem hoje um tanto turbulenta demais, mas que volta a despertar o interesse daqueles que querem morar bem, que ele confessa, entre irônico e melancólico: "Foi um ledo engano. Voltei para cá, sem pretensões proustianas, em busca de um tempo perdido. Mas esse tempo não existe mais..."
Emanoel fala de volta porque houve muitas idas e vindas. A visita de 63 foi a primeira de uma série que se estendeu até os anos 70, na qual ele se hospedava basicamente na casa do gravador Odeto Guersoni, na avenida Angélica, e mantinha, nas cercanias da República, contato com o grupo de intelectuais formados por Clóvis Graciano, Luís Martins, José Paulo Paes, Nelson Palma Travassos e Dinah Lopes Coelho, entre outros. "Era um pessoal ligado em ficção científica; tudo era fantasia, e, às vezes, escapava à minha compreensão", diz ele.
No mundo do concreto, no entanto, ocorreu o relacionamento profissional mais estreito com o pintor Aldo Bonadei e com os tapeceiros Roberto Nicola e Jacques Douchez.

Pouca gente sabe, afirma Emanoel, mas o Bonadei costumava expor quadros aos domingos na praça da República. Ou seja, o consagrado pintor brasileiro foi um precursor da feira hippie que ali sobrevive até hoje.
Quanto a Nicola, este passou a abrigar Emanoel em suas vindas à cidade no imponente casarão da alameda Glete. "É uma construção muito bonita, típica da arquitetura de Campos Elíseos, que era muito chique. A família de Nicola possuía outras edificações no bairro, e nelas havia os maravilhosos ornatos em gesso ou cimento feitos pelo avô do Nicola, um italiano muito talentoso."
Com as visitas frequentes, a vida de Emanoel foi se organizando em São Paulo, as exposições de seus trabalhos se sucedendo ao longo de toda a década de 60. Ao passar a se hospedar nos Campos Elíseos, Emanoel ficou ainda mais perto do quadrilátero que o interessava de verdade, que era o do entorno da praça da República.
"São Paulo, àquela época, era incrivelmente provinciana, se resumia à região da República e da avenida São Luiz", relembra.
Sobretudo, afirma, a São Paulo da intelectualidade ligada às artes plásticas e à literatura, que gravitava em torno da galeria Atrium, no Conjunto Zarvos, esquina da São Luiz com a rua da Consolação; da galeria São Luiz, comandada por Ana Maria Fiocca na própria avenida, mas perto do edifício Itália, ou a galeria de Pola Rezende, na rua da Consolação. Além da livraria Kosmos, instalada na galeria Metrópole, do outro lado da São Luiz. Tudo isso na sugestiva vizinhança da biblioteca Mário de Andrade, na praça Dom José Gaspar.
Também vizinho, mas nem tanto, sempre esteve o Teatro Municipal, ao lado do qual funcionava a galeria Astréia, para Emanoel a mais influente daquele período.
"A todo instante você encontrava nesses locais gente decisiva para a movimentação da cultura da cidade, como o José Mindlin [industrial, colecionador e bibliófilo], o Hércules Barsotti, o Clóvis Graciano ou o Willys de Castro [artistas plásticos]. Isso sem falar que os dois críticos mais importantes da época, o Quirino da Silva e o José Geraldo Vieira, moravam na rua Sete de Abril e na Vieira de Carvalho, também naquele trajeto."
Um trajeto do qual Emanoel se afastou em 1971, quando, contagiado pelo clima de "eu quero uma casa no campo" da canção que seria popularizada por Elis Regina nos anos seguintes, acabou indo morar em Taboão da Serra, município vizinho de São Paulo.

Quase uma década se passou até que ele "enjoasse de tanta clorofila" e retornasse, agora para um apartamento na própria São Luiz, próximo à esquina da Ipiranga, em oposição ao edifício Itália e, portanto, ao prédio em que reside hoje. Mas acabou ficando por ali apenas dois anos, mudando-se em seguida para o Bexiga, fixando residência e ateliê na rua dos Ingleses. Mais uma vez instigado por Bonadei, Emanoel se voltou, assim como o pintor, para as questões urbanas sugeridas pelo próprio perfil daquele bairro de casario irregular.
Ele ainda estava no Bexiga quando, em 92, estabeleceu um novo e decisivo pólo de atuação, na Pinacoteca do Estado.
Nos dez anos que se seguiram, até deixar o posto em 2002, Emanoel construiu uma das mais elogiadas carreiras de diretor de órgão público voltado para a cultura da cidade. Num trabalho de dedicação intensa e integral, como ele ressalta, colocou a Pinacoteca em evidência e a projetou internacionalmente, sobretudo com a histórica primeira mostra de obras do escultor francês Auguste Rodin, realizada em 95, que levou para o então acanhado museu ao menos 150 mil espectadores.
Uma façanha que redundaria na reforma completa do prédio, conduzida pelo consagrado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, e em outra exposição de Rodin, que desta vez atrairia 220 mil pessoas à Pinacoteca, hoje um espaço afinado com os mais modernos conceitos de museologia do mundo.
Ao deixar a Pinacoteca, motivado também pelo desgaste físico que seu trabalho na instituição acabou gerando, Emanoel não teve dúvida: estava na hora de voltar para "a cidade", ou seja, para o seu pedaço na República.
"Eu não tinha esgotado meu tempo ali, sentia sempre uma espécie de nostalgia. Mas quando resolvi voltar, levei um susto, não tinha me dado conta de como a cidade tinha ficado à margem da minha observação."

Mesmo assim, passado o primeiro impacto e feito o negócio que o levou aos dois últimos pisos do edifício São Luiz, ele não se furtou a olhar de forma carinhosa o que via de sua janela. "Este centro é o lugar onde identifico a cultura da cidade, a arquitetura como presença do homem. Veja o prédio do Caetano de Campos, os edifícios, a pintura da zebra do Cláudio Tozzi no alto do edifício perto da Barão de Itapetininga... Na verdade, a cidade da minha memória não acabou, o arcabouço emblemático continua todo aqui. Claro que não há mais a intimidade de andar calmamente na rua, encontrar as pessoas. A violência, inclusive estética, é uma realidade."
Sobre a tão propalada revitalização daquela região, com a valorização imobiliária dos grandes apartamentos da avenida São Luiz, hoje muito procurado por artistas e profissionais liberais, Emanoel elucubra: "A cidade ficou tão agigantada que esse ponto de passagem deixou definitivamente de ser o que era. Perdeu aquela coisa elegante que tinha, com a criação do absurdo "centro novo" e a instalação do maldito calçadão, que terminou dominado pelos camelôs."
A esperança de Emanoel é que esse movimento de retorno de artistas e formadores de opinião àquele pedaço da cidade possa ajudar a recuperar a "dignidade da região". Uma região que tem lugar garantido na memória de Emanoel Araújo e na própria trajetória de São Paulo.

Visite o site dos 450 anos de São Paulo na
www.folha.com.br/especial/2003/saopaulo450

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