São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Índice

GILBERTO DIMENSTEIN

Seleção brasileira de ignorantes

Suponha que a seleção brasileira de futebol não conseguisse nem mesmo passar das oitavas-de-final numa Copa do Mundo. Reação previsível: o país inteiro se sentiria humilhado, com o orgulho nacional ferido. A surra seria lembrada por gerações -assim como nunca esquecemos a derrota para os uruguaios há mais de meio século.
Na terça-feira, fomos informados de uma disputa entre países envolvendo um assunto muito mais relevante do que o futebol para o destino do Brasil. Ficamos em último lugar. Quase ninguém soube e, mesmo entre os que souberam da "goleada", muitos já devem ter, neste momento, esquecido.
Não se iludam: o jogo só vai virar quando pessoas reservarem pelo menos um quinto da atenção destinada ao futebol para as escolas, mais especialmente as públicas.

Num teste feito com alunos de 40 países, alguns deles pobres, o Brasil ficou em último lugar em matemática; em leitura, fomos ligeiramente melhor. Tirando os comentários de um punhado de educadores em meio a troca de acusações sobre responsabilidades, o caso passou batido.
Esse resultado é mais um entre tantos indicadores a mostrar que, apesar de todos os avanços, a educação não está conseguindo nem remotamente se aproximar das demandas da sociedade do conhecimento.

A surra do teste internacional nem é o pior resultado. Periodicamente divulgam-se dados do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica): gira em torno de 3% a porcentagem de alunos de escolas públicas com um nível de aprendizado considerado adequado. Vale repetir: 97% não aprenderam o que deveriam.
Desculpe a grosseria, caro leitor, mas imagine uma fábrica em que 97% dos produtos não respeitem as especificações. Quanto tempo essa fábrica teria de vida? Fábricas podem ser fechadas, escolas públicas não. Mas os efeitos da tragédia educacional provocam uma concordata coletiva.
Não é apenas injusto como uma asneira culpar apenas as escolas ou seus professores -muitos deles são heróis que sobrevivem a um massacre diário. São vítimas, por exemplo, da informação divulgada na quarta-feira pelo Unicef de que 27 milhões de crianças vivem abaixo da linha de pobreza.

Diante desses resultados, há uma ilusão de que a saída viria de dentro da escola. Nunca virá; a saída está do lado de fora. Pesquisas e mais pesquisas, baseadas em amostras de milhões de estudantes, mostram isso: sabe-se que o desempenho do aluno tem a ver com ingredientes como envolvimento da família, nível socioeconômico e os estímulos culturais. Filhos de pais que lêem têm maior tendência de se tornarem leitores, ingrediente crucial do aprendizado.
Não há, é óbvio, solução simples, rápida e barata. Mas a escola só conseguirá cumprir sua missão de criar indivíduos autônomos se houver uma ampla integração com a comunidade, compensando a defasagem cultural de seus alunos.

Isso significa que, além de diretores motivados, professores preparados e currículos com significado na vida do estudante, a escola deve administrar, não episodicamente, mas sempre, trilhas educativas pelos teatros, museus, cinemas, bibliotecas, institutos culturais, assim como por empresas, onde se conhecerão processos de produção. Parte das aulas terá de ser dada fora das escolas e, mais ainda, o professor terá de fazer sempre a conexão com o cotidiano e as matérias, dando-lhes significado.
Há um gigantesco potencial disponível, especialmente nas grandes cidades -mais ainda, nas regiões metropolitanas- de integração entre comunidade e escola, fazendo dessa mescla uma única vivência educativa. Existe um expressivo e crescente número de fundações e ONGs que só tratam de gestão escolar e experimentam programas complementares para ajudar professores. Muitos desses programas, documentados e avaliados, revelam um notável sucesso, são tecnologia social gratuita.

Não se está, com isso, falando nada de novo nem inventando nada. Em todas as escolas em que os alunos têm boa vivência cultural e famílias envolvidas, os resultados sempre são melhores.
Daí que muito pouco se vai conseguir se o poder público não oferecer para os diretores não só uma formação voltada para a gerência de salas de aulas mas também a de articulador comunitário. Ou seja, deverão ser treinados para cativar famílias e procurar parcerias e fazer da cidade, a começar do bairro, uma vivência educacional.

Cria-se, assim, uma comunidade de aprendizagem, com bairros e cidades educadoras, e não seleções de ignorantes. Vamos ter tão boas escolas públicas como temos times de futebol. Ninguém está dizendo que é fácil, simples ou barato. É tão difícil como ganhar uma Copa do Mundo.

PS - A partir das experiências que vi ou das quais participei, estou convencido de que educação daria um grande salto se cada escola tivesse um pedagogo comunitário. Esse profissional não daria aula, apenas faria a ponte, todos os dias, entre a escola e a comunidade, abrindo as trilhas educativas. Basta ver a qualidade das escolas públicas que conseguem ter, seja pela associação de pais e mestres, seja pelo entusiasmo de algum diretor ou de algum professor, alguém desempenhando tal função. Tenho certeza de que centenas de milhares de jovens talentosos se seduziriam por essa carreira, passando a trabalhar como educadores.
E-mail - gdimen@uol.com.br


Texto Anterior: Estética também atrai visitantes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.