São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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GILBERTO DIMENSTEIN

Vítimas da imbecilidade


A Polícia Militar foi informada da impossibilidade de continuar retirando carros e motos irregulares das ruas da cidade de São Paulo - uma medida elementar de segurança pública.
O motivo é simples e, ao mesmo tempo, espantoso: não há mais lugar para estacionar os veículos retidos, todos os pátios estão lotados .
Espantoso porque a solução seria simples, emperrada pela falta de bom senso e excesso de burocracia: bastaria prensar os automóveis, transformados em lixo, salvar algumas peças como os vidros e baterias, abrindo novas vagas.
É, em essência, algo parecido com a polícia parar de prender criminosos por falta de vagas para encarcerá-los - aliás, algo próximo de ocorrer.
A consequência óbvia é o reforço à sensação de impunidade no trânsito, mais um ingrediente da percepção geral de que a lei não está aí para ser cumprida.

Estatísticas colhidas na semana passada sobre o trânsito da cidade de São Paulo dão uma aula de impunidade nacional - e revelam cristalinamente qual o seu custo.
Lançado o novo código de trânsito para coibir a selvageria, os motoristas reagiram, temerosos de que fossem suspensos caso acumulassem determinada pontuação.
Nos primeiros meses, em 1998, viu-se uma queda vertiginosa de acidentes, reduzindo o número de feridos e mortos.
Imaginou-se, de início, que poderíamos, quem sabe, rumar para padrões civilizados; nos países mais desenvolvidos, o número de acidentes de carro é várias vezes inferior ao do Brasil.

Passado o efeito mercadológico dos primeiros meses, com o alarde publicitário, motoristas voltaram à selvageria habitual.
As rigorosas punições não se mostraram rigorosas. Peguemos o exemplo de São Paulo: dos 30 mil motoristas com mais de 20 pontos, que deveriam ter suas carteiras suspensas, apenas 1.800 sentiram, de fato, o gostinho da lei.
Ou seja, apenas 6% descobriram que não vale a pena barbarizar com seu automóvel, colocando em risco vidas alheias.
Na maioria dos Estados, 6% já seria um número extraordinário: ninguém é notificado.
De 1998 para 1999, o número de acidentes com vítimas cresceu 17%. Foram, no ano passado, 27 mil ocorrências, a imensa maioria delas responsabilidade apenas do motorista.
Esse massacre ocorreu apenas na cidade de São Paulo. Multiplique pelas cidades brasileiras para perceber como o trânsito é uma ameaça à saúde pública.
A tradução para as frias estatísticas são os filhos que perderam pais, mães que perderam filhos, trabalhadores paralisados numa cadeira de rodas.

O custo da impunidade, em vidas, está detalhado em estatísticas.
Na cidade de São Paulo, nesse mesmo período de 1998 a 1999, o número de mortos pelo trânsito cresceu 9%. Tradução: no ano passado, morreram 1.289 pessoas. Multiplique para dimensionar os feridos.
Quando o código de trânsito ainda inibia a incivilidade, os efeitos positivos foram expressivos: mortes na cidade de São Paulo caíram, de 1997 para 1998, cerca de 24%.
Daí se vê que a morte é provocada pura e simplesmente pela imbecilidade.

A imbecilidade vai ao ponto em que muitos pais fazem vistas grossas ao filho menor de 18 anos que pega o carro para dar voltas. Ou, descuidados, não guardam direito as chaves do carro.
Pessoas que estudam violência no trânsito afirmam que, ao ensinar o filho a guiar, nos fins-de-semana, como brincadeira, os pais, involuntariamente, estimulam a delinquência.
É uma das principais causas de acidentes em condomínios como Alphaville, a periferia rica de São Paulo.
Nos condomínios fechados, nos quais a impunidade é ainda maior, são frequentes os casos de vítimas dos adolescentes.
Não vou ser moralista, mas qualquer psicólogo de botequim sabe que adolescência e veículos motorizados são uma combinação explosiva.
Como demonstram os números, veículos e impunidade são também uma química explosiva para qualquer idade, seja adulto ou adolescente.
Vítimas do motorista irresponsável e do poder público incompetente.

PS - Segue aqui uma idéia que funciona no Distrito Federal -e que deveria ser aplicada em todo o país para ajudar a reduzir a selvageria.
No Distrito Federal, juízes determinavam que motoristas flagrados em alta velocidade trabalhassem em prontos-socorros, ajudando a receber pessoas acidentadas no trânsito.
Uma semana depois de testemunhar tanta gente quebrada, paralisada, comprometida para o resto da vida, os motoristas se conscientizavam da necessidade de dirigir com mais civilidade.


E-mail:gdimen@uol.com.br


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