São Paulo, quinta-feira, 13 de março de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Isolado em ilha..."

Quem é que sabe que há pleonasmo no pronome "comigo" ou na expressão "abismo sem fundo"?

ALGUNS LEITORES me pedem comentários sobre este título, publicado pela Folha na última terça-feira: ""Homo sapiens" isolado em ilha diminuiu de tamanho". Perguntam-me se não há pleonasmo na passagem "isolado em ilha", visto que "ilha" e "isolado" são palavras cognatas, ou seja, provêm do mesmo ventre (latino).
Antes de mais nada, parece razoável lembrar que de fato "ilha" vem de "insula" (do latim), que, de acordo com o "Houaiss", é "ilha, quarteirão cercado de ruas que o isolam do resto da cidade como o mar isola a ilha do resto das terras". Bem, se há pleonasmo em "isolado em ilha", o "Houaiss" cometeu "pecado" semelhante em "...como o mar isola a ilha do resto das...". Será? É melhor ir devagar com o andor, porque o santo nem de barro é; quando muito, é de pó.
Não podemos analisar certos fatos da língua com espírito matemático. Se assim o fizéssemos, teríamos de jogar fora milhares de palavras e expressões que resultam de pleonasmos de cuja formação não temos consciência. Quem é que sabe, por exemplo, que há pleonasmo no pronome pessoal "comigo" ou na expressão "abismo sem fundo"?
"Comigo" resulta da soma da preposição "com" + com a forma "migo" (pronome do português arcaico), que já significava "comigo", visto que vem do latim "mecum", que, por sua vez, vem de "me" + "cum" (equivalente a "com"). Em "abismo sem fundo" também ocorre pleonasmo, já que "abismo" (que vem do grego) significa literalmente "sem fundo". E quem é que sabe que o sentido literal de "abismo" é "sem fundo"?
O fato é que o uso e o tempo muitas vezes se encarregam de apagar certos traços semânticos presentes em diversas palavras ou expressões que fazem parte do nosso dia-a-dia ou mesmo das variedades formais da língua. O resultado disso é o emprego de "pleonasmos" que, na verdade, há um bom tempo não o são. Certamente é aí que se encaixa o caso de "isolado em ilha". Procure "isolar" no "Houaiss" ou no "Aurélio" e veja que nenhum deles dá "isolar" com o sentido de "pôr(-se) em ilha". Dão-se os sentidos decorrentes da metáfora baseada no sentido literal. Por falar em metáfora, sugiro ao leitor (mais uma vez) que assista ao antológico filme "O Carteiro e o Poeta" ("Il Postino"), com o monumental e saudoso ator napolitano Massimo Troisi.
A conversa sobre "ilha" e "isolar" me lembra um caso interessante.
Trata-se da doentia soberba dos britânicos, que, antes da construção do túnel sob o Canal da Mancha, diziam, em dias de mau tempo, em que era impossível navegar no canal, que "o continente está isolado da Grã-Bretanha". Se lhe faltava um bom exemplo de cúmulo dos cúmulos, espero ter preenchido definitivamente a lacuna.
Não resisto a outra tentação, a de lembrar que "insulina" (hormônio secretado pelo pâncreas) vem do francês "insuline", que por sua vez vem do latim "insula", que, como já vimos, significa "ilha". Sabe por quê? Porque essa substância é secretada em áreas do pâncreas chamadas de "ilhotas de Langherans".
Muito da riqueza da língua está nesses percursos, que, ainda bem, nem sempre são "exatos". É isso.


inculta@uol.com.br

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