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PASQUALE CIPRO NETO
"Isolado em ilha..."
Quem é que sabe que há
pleonasmo no pronome
"comigo" ou na expressão
"abismo sem fundo"?
ALGUNS LEITORES me pedem
comentários sobre este título,
publicado pela Folha na última terça-feira: ""Homo sapiens"
isolado em ilha diminuiu de tamanho". Perguntam-me se não há
pleonasmo na passagem "isolado
em ilha", visto que "ilha" e "isolado" são palavras cognatas, ou seja,
provêm do mesmo ventre (latino).
Antes de mais nada, parece razoável lembrar que de fato "ilha"
vem de "insula" (do latim), que, de
acordo com o "Houaiss", é "ilha,
quarteirão cercado de ruas que o
isolam do resto da cidade como o
mar isola a ilha do resto das terras". Bem, se há pleonasmo em
"isolado em ilha", o "Houaiss" cometeu "pecado" semelhante em
"...como o mar isola a ilha do resto
das...". Será? É melhor ir devagar
com o andor, porque o santo nem
de barro é; quando muito, é de pó.
Não podemos analisar certos fatos da língua com espírito matemático. Se assim o fizéssemos, teríamos de jogar fora milhares de palavras e expressões que resultam de
pleonasmos de cuja formação não
temos consciência. Quem é que sabe, por exemplo, que há pleonasmo
no pronome pessoal "comigo" ou
na expressão "abismo sem fundo"?
"Comigo" resulta da soma da
preposição "com" + com a forma
"migo" (pronome do português arcaico), que já significava "comigo",
visto que vem do latim "mecum",
que, por sua vez, vem de "me" +
"cum" (equivalente a "com"). Em
"abismo sem fundo" também ocorre pleonasmo, já que "abismo"
(que vem do grego) significa literalmente "sem fundo". E quem é
que sabe que o sentido literal de
"abismo" é "sem fundo"?
O fato é que o uso e o tempo muitas vezes se encarregam de apagar
certos traços semânticos presentes
em diversas palavras ou expressões
que fazem parte do nosso dia-a-dia
ou mesmo das variedades formais
da língua. O resultado disso é o emprego de "pleonasmos" que, na verdade, há um bom tempo não o são.
Certamente é aí que se encaixa o
caso de "isolado em ilha". Procure
"isolar" no "Houaiss" ou no "Aurélio" e veja que nenhum deles dá
"isolar" com o sentido de "pôr(-se)
em ilha". Dão-se os sentidos decorrentes da metáfora baseada no sentido literal. Por falar em metáfora,
sugiro ao leitor (mais uma vez) que
assista ao antológico filme "O Carteiro e o Poeta" ("Il Postino"), com
o monumental e saudoso ator napolitano Massimo Troisi.
A conversa sobre "ilha" e "isolar"
me lembra um caso interessante.
Trata-se da doentia soberba dos
britânicos, que, antes da construção do túnel sob o Canal da Mancha, diziam, em dias de mau tempo, em que era impossível navegar
no canal, que "o continente está
isolado da Grã-Bretanha". Se lhe
faltava um bom exemplo de cúmulo dos cúmulos, espero ter preenchido definitivamente a lacuna.
Não resisto a outra tentação, a de
lembrar que "insulina" (hormônio
secretado pelo pâncreas) vem do
francês "insuline", que por sua vez
vem do latim "insula", que, como já
vimos, significa "ilha". Sabe por
quê? Porque essa substância é secretada em áreas do pâncreas chamadas de "ilhotas de Langherans".
Muito da riqueza da língua está
nesses percursos, que, ainda bem,
nem sempre são "exatos". É isso.
inculta@uol.com.br
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