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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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DANUZA LEÃO

Diferentes loucuras

A rua é comum, sem muito movimento; aliás, sem movimento algum. Não chega a ser uma rua completamente sossegada, mas também não é uma rua animada. Sem árvores nem comércio, é apenas uma rua, nem de gente pobre nem de gente rica. Uma rua comum.
Num prédio também comum, no quinto ou no sexto andar, um apartamento. Prestando muita atenção, dá para perceber que deve ser um conjugado, pois só tem duas janelas dando para a rua, sendo uma, visivelmente, a do banheiro.
Ele deve ter entre 60 e 70 anos, é meio gordo, meio careca, com alguns cabelos brancos. Bem cedo, lá pelas 7h da manhã, chega à janela sem camisa e fica olhando para baixo. Olha, olha e entra. Daí a pouco volta, fica exatamente na mesma posição -com o cotovelo para fora-, olha, olha e entra. Isso, várias vezes por dia, todos os dias. Parece morar sozinho, e não deve trabalhar, pois está sempre em casa. E deve ser só, muito só.
Quem é esse homem? O que faz, que tipo de vida leva, o que procura tanto, olhando pela janela, o que pensa, como se distrai? Ele dá a impressão de não ter ninguém nem nada na vida.
Nunca passa mais de meia hora sem que chegue à janela; seu olhar é vago, como se não tivesse nenhum elo com a vida, a não ser com aquele pedaço de rua onde não acontece nada. Nada, não: bem em frente à sua janela, há uma carrocinha que vende sorvetes, jujubas, chocolates.
Numa outra rua, 200 metros adiante, o bairro fervilha: são barraquinhas vendendo livros usados, artesanato, frutas, roupas baratas -foi armado até um varal com camisetas de várias cores, um mundo alegre inventado pelo comércio popular da área. E ainda tem as carrocinhas de cachorro-quente, de caldo-de-cana, até de pastel. Nas lojas de eletrodomésticos, várias televisões estão ligadas, cada uma em um canal, e os vendedores, bem à moda antiga, ficam na porta, esperando os fregueses. Como se vê, a rua ferve, como só as ruas bem populares conseguem. No botequim da esquina, sempre rola um pagode, como só costuma acontecer nos bairros bem populares, e ninguém está nem aí para a guerra do Iraque ou para a guerra urbana.
Mas nada consegue fazer esse homem sair de casa. Quando escurece, ele acende a luz do teto -uma lâmpada triste, daquelas de 40 velas- e volta para a janela, faça sol ou faça chuva, e fica olhando para o nada.
Será que ele espera que alguma coisa aconteça, que alguém chegue trazendo uma notícia, que a mulher volte, que sua vida mude? Não parece. Seus ombros caídos são o retrato de quem não espera mais nada.
Lá pelas 8h da noite, ele liga a televisão, vê durante uma meia hora, depois desliga e apaga a luz.
Enquanto isso, no prédio em frente, alguém fala ao telefone, troca o canal de TV, pega um livro, vê um trecho de filme, faz a agenda do dia seguinte, combina um jantar, fica na dúvida entre um japonês e uma churrascaria e se veste pensando em como deve ser a vida do vizinho que vive na janela, pensando em como tem gente louca nesse mundo.
Se ele soubesse da vida dela, talvez pensasse a mesma coisa.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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