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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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SAÚDE

Entidades que reúnem vítimas e familiares de várias patologias conseguem vitórias como acesso gratuito a medicamentos

Pacientes organizados têm mais benefícios

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Viver ou morrer depende não só da doença que se pega, mas também do "lobby" que se organiza em torno dela. O nível de gravidade e de letalidade das patologias costuma depender igualmente do grau de organização dos seus pacientes e familiares.
Às vezes, esse critério chega a ser mais cruel e discriminatório do que a própria doença. Os familiares dos cerca de 2.000 pacientes de fibrose cística diagnosticados no país estão organizados em 20 associações, em 20 Estados. Estão conseguindo a sobrevida de seus filhos com medicação cara obtida por pressões no Ministério da Saúde e ações na Justiça. A fibrose cística é uma doença genética que ataca crianças brancas.
As vítimas da anemia falciforme -outra doença genética e que chega a atingir até 2,5 crianças em mil- não têm nenhuma associação nacional que as represente e mal lutam pelo direito ao teste do pezinho. A doença, de origem africana, ataca especialmente crianças negras e, quando não mata, provoca atrasos no crescimento e infecções repetidas.
São dois exemplos que ilustram o peso do lobby, exercido no sentido de se organizar e brigar pelos direitos. No caso da fibrose cística, muito se deve ao empresário curitibano Sérgio Sampaio, que não se conformou com a perspectiva de alguns anos de vida para seu filho. O filho tem hoje 15 anos e toca a vida como seus colegas, estuda e pratica esportes.
Em 1986, quando a dengue fazia vítimas na Baixada Fluminense e ninguém sabia o que era, associações de moradores fecharam o principal acesso ao Rio, exigindo providências das autoridades.
O episódio é relatado pelo sanitarista Sérgio Arouca, que hoje dirige a Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde. Sua função é justamente a de integrar ações de governo com a participação dos cidadãos. "Algumas organizações populares chegam a ter mais força do que o Estado."
Na última sexta-feira, quem passou pelo Masp da avenida Paulista, em São Paulo, viu dezenas de pessoas pintando, dançando e cantando. Prestando atenção, notava-se que eram no geral idosos com tremores nas mãos ou dificuldades na fala. Era uma "festa" dos portadores da doença de Parkinson, que comemoravam o seu dia internacional e lembravam que, mesmo doentes, podiam manter várias atividades.
"Desde o ano passado, conseguimos, em lei, que o governo nos garanta a medicação que custaria ao paciente R$ 500 ao mês", diz o advogado Samuel Grossmann, presidente da Associação Brasil Parkinson. A associação foi fundada em 1985 por Marylandes Grossmann, também vítima da doença, que no ano passado precisou deixar o comando da entidade. No Brasil, há cerca de 180 mil doentes de Parkinson organizados em seis capitais. Também na sexta, na Assembléia Legislativa, Samuel Grossmann cobrou do governo o fato de a lei do deputado Hamilton Pereira (PT-SP) ainda "não estar em prática".
Também na sexta, o navegador John Dennis, que competiu na regata Around Alone, aportou em São Paulo com o título de "embaixador do diabetes". Diabético há seis anos, ele faz uma espécie de "globalização" dos movimentos de pacientes, encorajando-os a monitorarem seu tratamento assim como monitora seu barco.
No Brasil, há associações de diabéticos em dezenas de cidades e em todos os Estados. Uma das mais antigas nasceu no Rio há 30 anos.

"Educação terapêutica"
"Os pacientes de doenças crônicas são os que mais se beneficiam das associações, pois, além de informações, ele precisa aprender a se medicar e a adotar certas práticas de vida", diz a médica Laurenice Pereira Lima, do Ministério da Saúde. A médica chama essa prática de "educação terapêutica", necessária para que o paciente aceite sua doença, melhore sua auto-estima, mude hábitos e siga corretamente o tratamento, às vezes pela vida toda.
Hoje, no Brasil, estima-se que existam 5 milhões de diabéticos, e quase todos do tipo 2, que aparece com a idade e tem a ver com o sedentarismo e a obesidade.
Quase todos os Estados têm um fórum de patologias, representado no Conselho Estadual de Saúde. O de São Paulo tem representantes de cerca de 20 doenças, as mais conhecidas e prevalentes como o diabetes, a hemofilia, a deficiência física e mental, os renais crônicos, a esclerose múltipla e a paralisia cerebral. Mas há também patologias menos conhecidas, como o lúpus, a talassemia, a "doença de Wilson" e os portadores de distúrbios do crescimento.
O Movimento de Portadores de Esclerose Múltipla (Mopem), do Estado de São Paulo, reúne vítimas de uma doença neurológica que se manifesta de diversas maneiras, de distúrbios motores a problemas visuais, e que afeta cerca de 2.000 pessoas no Estado.
O movimento em São Paulo foi fundado e é presidido por Cleuza de Carvalho Miguel, 54, que há 23 anos é portadora da doença. "Em 97, conseguimos que o governo nos garantisse a medicação que custaria a cada um de nós R$ 3.000 por mês", diz Cleuza Miguel. Para a maioria dos pacientes, o remédio impede os surtos e garante uma vida normal.

Doença milenar
O Fórum Nacional é integrado por representantes de 32 entidades, mas, na última reunião, na semana passada, só estiveram 19. "Problemas financeiros", resume Artur Custódio Moreira de Souza, coordenador nacional do Morhan, Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase e representante dessa entidade no Fórum de Patologias.
O fórum tem seis representantes entre os cerca de 50 que formam o Conselho Nacional de Saúde, órgão deliberativo e de controle social do Ministério da Saúde. É por esse canal que os representantes conseguem mudanças nas políticas públicas.
O Morhan é um dos movimentos mais ativos e organizados, apesar de a hanseníase ser uma doença milenar, "de pobre", cheia de estigma e que cresce no caldo da desinformação. O Brasil é o segundo país em número de doentes, só depois da Índia, e 45 mil novos casos ocorrem a cada ano. Desses, 3.000 ficam com sequelas.
O empenho de Artur de Souza transformou o movimento num dos mais ativos, com o apoio de artistas e cerca de cem associações em todo o país. A rede montada identificou, por exemplo, que nos últimos meses faltou remédios em Tocantins, embora a droga seja doada pela Organização Mundial da Saúde, diz Souza.

O exemplo da Aids
A patologia que mais ganhos teve com a organização das entidades civis foi a Aids, de longe. São cerca de 600 ONGs no país, 350 delas só no Estado de São Paulo, todas diretamente relacionadas com o HIV/Aids. Diferentemente da hanseníase, que ganhou visibilidade com a militância que chegava de fora da doença, na Aids as lideranças eram as próprias vítimas. Filhos da classe média, com visibilidade na mídia, força política, conta bancária e experiência militante, os grupos atingidos pela Aids rapidamente se mobilizaram em muitos países.
No Brasil, "infiltraram-se" nos órgãos de saúde e foram para as ruas, conseguindo em lei o fornecimento de medicamentos para todos. São os únicos pacientes que podem contar com todos os medicamentos disponíveis lá fora. Na última sexta-feira, num encontro do Fórum de ONG-Aids, os participantes reivindicavam o acesso ao T-20, nova droga da Roche que ainda aguarda aprovação nos EUA e na Europa. Refinamento, as ONGs-Aids estão pressionando os laboratórios para que ampliem suas pesquisas em novas drogas e com menos efeitos colaterais.
"Nossa função agora é levar esse conhecimento e essa prática a representantes de outras patologias", diz o filósofo Eduardo Barbosa, 41, presidente do Fórum de ONGs de São Paulo.
Não há uma explicação clara, mas várias enfermidades com grande número de pacientes -o câncer, especialmente- são pouco organizadas. Limitam-se a grupos de mastectomizados -mulheres que perderam a mama- e solidários ao câncer infantil. "Talvez porque no Brasil a doença ainda tenha um forte estigma", diz Maria Tereza Cruz Lourenço, diretora do departamento de psiquiatria e de psicologia do Hospital do Câncer. "Há mais solidariedade do que organização dos pacientes", diz Sérgio Arouca. "Mas é preciso mudar para conquistar os direitos", ele afirma. "Há quimioterápicos de primeira geração disponíveis lá fora que o governo ainda não compra."


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