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URBANIDADE
Ilustração Vincenzo Scarpellini
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NA SÃO JOÃO Albert Camus: "Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até o cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. A acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais. No entanto, segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisso a menor contradição". (VINCENZO SCARPELLINI)
A galinha, o veado e o futuro
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
O estudante universitário Manuel Bonduki conseguiu, nesta semana, o direito de
ser lembrado daqui a cem anos,
mais precisamente em 11 de
agosto de 2103.
Animados por goles de cerveja
em um bar da Vila Madalena,
integrantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, entre os quais
Manuel, discutiam idéias para
as comemorações do centenário
do grêmio, iniciadas na segunda-feira passada. Queriam algo
que fosse além dos discursos
solenes.
Manuel propôs, então, um projeto que durasse um século. Uma
pretensão que inicialmente foi
entendida pela pequena platéia
como uma daquelas obras de
inspiração etílica tão comuns em
mesas de bar. Sugeriu que enterrassem no largo São Francisco,
onde está a Faculdade de Direito, uma urna para ser aberta
quando o XI de Agosto comemorasse seu bicentenário. "Virou
uma brincadeira coletiva", diz
Manuel.
A urna atiçou a imaginação
criadora não só dos alunos mas
dos moradores e das pessoas que
trabalham no centro, especialmente dos advogados. Velhinhas
deixaram cartas para serem
abertas por seus familiares; garçons enviaram os cardápios de
seus restaurantes. Irônicos, alunos depositaram monografias
escritas por professores da faculdade e exigidas por eles próprios
como leitura obrigatória nas
provas, para saber se resistirão
ao tempo.
Manuel preferiu tirar fotos dos
contrastes sociais do centro para
serem avaliadas na posteridade.
"Será que daqui a cem anos,
quando abrirem as urnas e virem as fotos, vão sentir pena da
gente?", especula Manuel.
Se a primeira turma de estudantes do XI de Agosto tivesse
depositado em uma urna as fotos da época para serem vistas
agora, o cenário seria mais elegante, dificilmente se registrariam imagens de meninos de
rua, de camelôs e de pedintes.
Sonhando em ser uma metrópole de estilo europeu, São Paulo tinha, na época, 240 mil habitantes, e bondes eram puxados por
burros pelo viaduto do Chá, onde era cobrado pedágio. Provavelmente, nenhum estudante se
imaginaria jogando uma galinha numa mulher, muito menos
numa prefeita -e ninguém
acreditaria se alguém contasse
ter ouvido um ministro da Justiça, numa solenidade, usar a palavra "veado" para qualificar
uma ofensa.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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