São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2004

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MOACYR SCLIAR

Anjo com grandes músculos e pequenas asas

 Morre jovem que usou anabolizante animal. Morreu em Brasília um dos jovens que injetaram anabolizante e complexo vitamínico nos braços para "inflar" os músculos. Cotidiano, 19.set.2004

Da intoxicação pela substância resultou o coma e deste o óbito. Mas no território de ninguém que medeia entre a vida e a morte, houve tempo para uma espécie de sonho, ou de pesadelo, ou de mistura de sonho e de pesadelo. A derradeira aventura, cuja memória o acompanharia por toda a eternidade.
Tal como esperava, e mesmo naqueles momentos finais, a droga que se injetara funcionou. Barata ou não, proibida ou não, estava produzindo seus efeitos. Ele passava por uma espantosa modificação; seus músculos cresciam extraordinariamente, atingiam dimensões jamais vistas em qualquer ser humano. Bonito não ficava, mas certamente era agora um prodígio, desses que qualquer programa de TV mostraria com orgulho.
Isso, claro, já não aconteceria. Crescendo com violência, os músculos drenavam rapidamente o pouco de energia vital que lhe restava e em questão de segundos ele expirou.
Viu-se, sem surpresa, subindo ao Céu. Céu, sim. Por que não? Nada tinha feito de errado. É pecado, querer ser musculoso? Talvez houvesse um pouco de vaidade nisso, mas nada que pudesse ser caracterizado como transgressão grave. Músculos são vida. Ele apenas pretendia transformar seu corpo num monumento à vida.
No Céu foi recebido com espanto. Ali estava, no meio de anjos -sim, ele agora era um anjo. Verdade que bastante esquisito. Nada tinha de parecido aos diáfanos e delicados querubins que, recostados em nuvens, tocavam harpas. Diferente deles, seus músculos, enormes, avultavam sob a túnica diáfana. E, diferente deles, as asas -sim, ele agora tinha asas- eram pequenas, atróficas, ridículas. Com aquelas asas jamais poderia voar. Elas não tinham a menor condição aerodinâmica, ou mesmo espiritual, de transportar o grotesco corpo. Os anjinhos mal conseguiam disfarçar o riso diante da perturbadora figura. Logo, logo, ele seria objeto de piadas e historinhas.
A ele isto não importa. Não voejará pelo espaço infinito; também não tocará harpa -suas mãos são brutas demais para tal. Mas no dia em que no Céu for organizado um concurso tipo Mister Mundo, ele terá o seu momento de glória. Porque nesse concurso ele será imbatível. Voar? Quem precisa voar? Quem tem músculos poderosos não precisa de delicadas asinhas.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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