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MOACYR SCLIAR
Anjo com grandes músculos e pequenas asas
Morre jovem que usou anabolizante
animal. Morreu em Brasília um dos
jovens que injetaram anabolizante e
complexo vitamínico nos braços para "inflar" os músculos. Cotidiano,
19.set.2004
Da intoxicação pela
substância resultou o coma
e deste o óbito. Mas no território
de ninguém que medeia entre a
vida e a morte, houve tempo para
uma espécie de sonho, ou de pesadelo, ou de mistura de sonho e de
pesadelo. A derradeira aventura,
cuja memória o acompanharia
por toda a eternidade.
Tal como esperava, e mesmo
naqueles momentos finais, a droga que se injetara funcionou. Barata ou não, proibida ou não, estava produzindo seus efeitos. Ele
passava por uma espantosa modificação; seus músculos cresciam
extraordinariamente, atingiam
dimensões jamais vistas em
qualquer ser humano. Bonito não
ficava, mas certamente era agora
um prodígio, desses que qualquer
programa de TV mostraria com
orgulho.
Isso, claro, já não aconteceria.
Crescendo com violência, os músculos drenavam rapidamente o
pouco de energia vital que lhe restava e em questão de segundos ele
expirou.
Viu-se, sem surpresa, subindo
ao Céu. Céu, sim. Por que não?
Nada tinha feito de errado. É pecado, querer ser musculoso?
Talvez houvesse um pouco de
vaidade nisso, mas nada que pudesse ser caracterizado como
transgressão grave. Músculos são
vida. Ele apenas pretendia transformar seu corpo num monumento à vida.
No Céu foi recebido com espanto. Ali estava, no meio de anjos
-sim, ele agora era um anjo.
Verdade que bastante esquisito.
Nada tinha de parecido aos diáfanos e delicados querubins que,
recostados em nuvens, tocavam
harpas. Diferente deles, seus músculos, enormes, avultavam sob a
túnica diáfana. E, diferente deles,
as asas -sim, ele agora tinha
asas- eram pequenas, atróficas,
ridículas. Com aquelas asas jamais poderia voar. Elas não tinham a menor condição aerodinâmica, ou mesmo espiritual, de
transportar o grotesco corpo. Os
anjinhos mal conseguiam disfarçar o riso diante da perturbadora
figura. Logo, logo, ele seria objeto
de piadas e historinhas.
A ele isto não importa. Não voejará pelo espaço infinito; também
não tocará harpa -suas mãos
são brutas demais para tal. Mas
no dia em que no Céu for organizado um concurso tipo Mister
Mundo, ele terá o seu momento
de glória. Porque nesse concurso
ele será imbatível. Voar? Quem
precisa voar? Quem tem músculos
poderosos não precisa de delicadas asinhas.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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