São Paulo, domingo, 13 de setembro de 1998

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Literatura reportou "doenças"

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

O sadismo e o masoquismo têm em comum uma curiosa particularidade: são "doenças" que não foram denominadas a partir de médicos que as identificaram, mas sim a partir de escritores que criaram personagens portadores de seus respectivos sintomas.
A observação partiu em 1967 do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995). Outra constatação: essas duas formas de relacionamento, ao serem repertoriadas pela porta da literatura -e não da medicina-, têm uma estreita ligação com a linguagem.
Com Leopold von Sacher-Masoch (1835-1895), o personagem autobiografado só se expõe aos maus-tratos que lhe produzem um prazer mórbido depois de negociar com a algoz (uma ex-namorada do escritor, chamada Fanny von Pistor) um "contrato" que estipule o conteúdo e os limites dessa relação perversa.
Assim, o prazer depende de um sofrimento que deve ser previamente verbalizado. A vítima do masoquismo recebe garantias verbais de que sairá machucado, mas não será, por exemplo, morto.
A linguagem é também o princípio sobre o qual se fundamenta a orgia sádica. O marquês de Sade (1740-1814) considera que o "crime" -a imputação de sofrimentos às vítimas escolhidas- só faz sentido se for previamente embasado em razões grosso modo filosóficas, aquelas que fundamentam o discurso libertino.
O crítico Roland Barthes (1915-1980) vai mais longe: a orgia em Sade produz tanto prazer pelos maus-tratos quanto pela linguagem. É a razão libertina (os argumentos verbalizados) que distingue os maus-tratos no sadismo de uma tortura vulgar.
Digamos, por fim, que não é a presença (ou a ausência) da linguagem que banaliza a dimensão psicanaliticamente perversa ou moralmente condenável do sadismo e do masoquismo, como duas formas de relação erótica que dependem do sofrimento.
Os personagens do marquês de Sade e de Sacher-Masoch fazem parte de um universo dolorosamente real, em nada literário, e é dentro dele que devem ser analisados.



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