São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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DANUZA LEÃO

Infância na praia


Às vezes alguém inventava de fazer um buraco e enterrar uma das crianças, deixando só a cabeça dela de fora

QUANDO criança você passava suas férias no campo ou na praia? Atenção: praia, não hotel tipo resort; praia de outros tempos.
A minha era assim: ninguém se deitava na areia para se queimar, e as crianças ficavam agachadas olhando os siris brancos que andavam de lado e fugiam se enfiando nos buracos.
As brincadeiras eram sempre as mesmas: fazer um castelo de areia e depois decorar o castelo com areia molhada, como se fosse um bolo, ou pegar um graveto para desenhar ou escrever na areia; depois vinha a onda, desmanchava tudo, se começava tudo de novo e ninguém se cansava de fazer sempre a mesma coisa.
Às vezes alguém inventava algo de mais excitante: fazer um buraco e enterrar uma das crianças, deixando só a cabeça de fora. Era a primeira atração pelo perigo, e se morria de medo da noite chegar e ficar enterrada ali para sempre, gritando, pedindo socorro na escuridão, sem ninguém ouvir.
Ao meio-dia era hora de ir almoçar, ainda com o maiô molhado, e depois se ficava na varanda, sentada no chão, não fazendo nada ou brincando com cinco pedrinhas do mesmo tamanho. A brincadeira era jogar uma para o alto e, com a mesma mão, apanhar uma que estivesse no chão; depois apanhar duas, depois três, depois quatro, e assim se passava a tarde.
Lá pelas quatro horas, era a hora do banho; a cabeça era lavada com sabonete, depois era só vestir um vestido bem limpinho e ir passear na beira do mar sem sapatos.
Ah, era bom: o sol caindo e a gente com os pés na água, correndo das ondas para não molhar a roupa. Do mar vinha um cheiro bom de maresia, que dava vontade de respirar bem fundo e viver muito. Ninguém entendia direito que vontade era essa, mas era a melhor sensação do mundo -o primeiro contato com a sensualidade.
O sol era muito forte, mas ninguém pensava em se proteger. À noite as costas ardiam e, como não havia ainda Caladril, o remédio era fazer uma mistura de polvilho com cachaça e passar nos ombros. Aliviava, mas não evitava que a pele descascasse. Ardia, e que bom era a pele arder porque se tomou sol demais, tão boa a vida antes da tal camada de ozônio.
O jantar era às sete e não havia horário de verão, nem televisão. Ficava todo mundo pelos cantos, até chegar o sono. As crianças não falavam alto nem brigavam e quando, às vezes, ficavam coçando um dedinho do pé, a filha da empregada ia ver se não era bicho de pé. Ficava todo mundo em volta torcendo para ser; ela pegava uma agulha, passava no álcool, acendia um fósforo, para esterilizar, e com a ponta da agulha levantava a pele mais grossa, depois a mais fina, e todo mudo torcia para o bicho sair inteiro. Quando isso acontecia, ficava um buraquinho no pé, mas sem uma só gota de sangue.
Nunca passou pela cabeça de ninguém que o ano 2000 um dia ia chegar, e quem um dia sentiu o cheiro de uma cabeça de criança lavada com sabonete Lifebuoy, dele nunca mais se esqueceu.
PS: Estou entrando em férias e volto no dia 18 de fevereiro.

danuza.leao@uol.com.br


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