São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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ERA UMA VEZ...

Hábito também promove a interação entre pais e filhos e é a porta de entrada das crianças para o mundo das artes

Contar histórias ajuda a formar inconsciente infantil

DÉBORA YURI
DA REVISTA

Maria Eugênia, 8, cresceu convivendo todas as noites com seus amigos Come-come e Ninoca. Suas brincadeiras favoritas aconteciam no seu castelo mágico. Mas nenhum dos dois personagens existe, nem o castelo: tudo foi inventado pelo pai da garota.
"Na hora de colocá-la para dormir, comecei a contar histórias baseadas nos filmes da Disney. Percebi que ela ficava mais interessada quando eu a colocava dentro da narrativa", conta o consultor de marketing Carlos Eduardo de Moraes Lacerda, 50, o "inventor", do "castelo mágico da Maria Eugênia" e da "casinha da ratinha Ninoca".
Quando Pedro, hoje com dois anos, estava para nascer, Maria Eugênia começou a ouvir histórias cujo enredo já trazia o futuro irmão. "Foi o melhor jeito que arrumamos para prepará-la", diz Lacerda, que compartilha a tarefa com a ex-mulher, a publicitária Juliana Geve, 35. "Essa é a nossa divisão: ela lê livros, eu invento."
Contar histórias, sejam de autores clássicos ou fruto da criatividade pessoal, é uma tradição fundamental para o crescimento. "É o primeiro contato das crianças com o percurso de desenvolvimento humano. Elas vêem heróis e heroínas encarando obstáculos, vão aprendendo que é preciso enfrentar um problema e buscar solução", diz Regina Machado, 53, coordenadora do grupo de contadores de histórias do Núcleo de Arte e Educação da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes).
Ela ressalta a importância das histórias na formação do inconsciente infantil. "Personagens como a mãe boa e a bruxa malvada ajudam a elaborar certas relações nessa faixa etária, como a ligação da criança com sua família, além de transmitir conceitos sobre o bem e o mal, o certo e o errado."
O hábito ainda promove a interação entre pais e filhos. "Os dois lados compartilham um espaço diferente do dia-a-dia e trocam valores humanos básicos", diz Machado, que ministra cursos de contadores de histórias e lançará na Bienal o livro "Fundamentos Teórico-Poéticos da Arte de Contar Histórias" (editora DCL).
A ficção infantil, sobretudo o conto de fadas, é também a porta de entrada da criança no universo cultural. A literatura infantil é um caminho que pode levar a outras artes, como o cinema", diz Roxane Rojo, professora de lingüística aplicada da PUC-SP.
Ela sugere que o primeiro livro da vida seja dado como um presente de nascimento ao bebê. "Ele será usado um pouco mais tarde, mas é bom já ir deixando o quarto do filho cheio de livros", afirma.
Rojo faz um alerta: a escola tem papel fundamental na criação dos jovens leitores. "Os próprios pais têm de valorizar o livro, o que muitas vezes não acontece. Por isso é obrigação da escola inserir a leitura no programa desde a educação infantil."

Contadores
O interesse pela atividade fez pipocar cursos que pretendem ensinar como ser um bom "narrador", e grandes livrarias passaram a incluir em sua programação de final de semana oficinas com contadores de histórias. "Antes eu capacitava muitos professores, hoje o grosso do público são pais e mães", diz o arte-educador Giuliano Tierno, 26, que ministra cursos em todo o Estado.
Com o tempo, segundo Giuliano, o processo natural é que os papéis se invertam, e a criança comece a contar as histórias ouvidas. "Geralmente ela pede para o adulto contar várias vezes a mesma história, até decorá-la."
Carlos Lacerda conta que ficou emocionado há algumas semanas, quando levou a filha Maria Eugênia ao cinema. Juntos, eles assistiram "Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas", filme de Tim Burton que mostra a relação entre um pai contador de casos fabulosos e seu filho.
"Acho que a criança que ouve histórias na cama nunca mais esquece a relação que estabelece com seu "contador'", diz. Quer jeito mais gostoso de se tornar inesquecível?



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