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MOACYR SCLIAR
O sonho dos super-heróis
Crise nas histórias em quadrinhos. A
invasão de heróis mascarados nas telas dos cinemas comprova que as
vendas das revistas em quadrinhos
propriamente ditas andam de mal a
pior no maior mercado de super-heróis do mundo. "O mercado é declinante em todo lugar", comenta Sérgio Figueiredo, redator-chefe da
Abril Jovem. "O fã de quadrinhos
não entende isso, mas tudo na vida
passa." Ilustrada, 8.abr.2003
Ao perceber que já não
havia mais lugar para eles
no imaginário do público, os velhos personagens de histórias em
quadrinhos decidiram isolar-se
do mundo. De comum acordo,
adquiriram um grande terreno
na Flórida, onde construíram um
lar para idosos, dotado de todo o
conforto: o Retiro da Fantasia. Ali
vivem a sua tranquila existência,
inevitavelmente perturbada pelos
achaques da velhice. O Super-Homem, por exemplo, já não pode
voar; falta-lhe energia para tal. O
Homem-de-Borracha sofre de
reumatismo e geme a cada movimento. A Mulher-Maravilha
olha-se no espelho e fica consternada: desapareceu para sempre,
pensa, aquela maravilha que eu
fui. Batman e Robin finalmente
assumiram-se como casal, mas
brigam sem parar.
São coisas que acontecem na
idade avançada, mas que, de
qualquer maneira, não chegavam a ser um problema para a
comunidade. Um dia, porém,
chegou ao Retiro um ancião que
queria ali ser admitido. Alegou
para isso sua condição de ex-personagem. Ele era, segundo
explicou, o Homem-Abelha.
Quando pronunciava certa palavra mágica, seu nariz se transformava num imenso ferrão, capaz
de liquidar vários inimigos. Essa
palavra, infelizmente, ele a tinha
esquecido.
O caso foi examinado pela comissão de admissão. Ninguém ali
ouvira falar do Homem-Abelha;
mas a verdade é que muitos já tinham esquecido os heróis do passado. Decidiram, pois, dar ao recém-chegado o benefício da dúvida e aceitaram-no.
Na semana seguinte, novo candidato: o Homem-Gelatina. Pronunciando certa palavra mágica,
ele se transformava numa gelatina de aspecto repugnante, que
englobava e sufocava os inimigos
da democracia. Como o Homem-Abelha, o Homem-Gelatina esquecera a palavra mágica; mas,
como o Homem-Abelha, foi admitido. Três dias depois, apareceu
a Mulher-Lâmpada, que, transformada numa potente lâmpada,
cegava instantaneamente os inimigos. A ela seguiram-se o Homem-Fumaça, a Mulher-Nuvem,
o Homem-Polvo, o Homem-Lâmina, os Irmãos Abutres. Todos
foram admitidos, e o resultado é
que hoje o Retiro está cheio de
gente, no parque, no refeitório, na
enfermaria. E nada indica que a
demanda vá cessar. Flash Gordon
está pensando em ir embora para
um outro planeta, Tarzan quer
retornar para a selva (só não o faz
porque os macacos com quem
convivia de há muito já morreram).
Resta-lhes uma esperança. Um
dia o presidente Bush haverá de
chamá-los para invadir um país
qualquer. E aí mostrarão quem
realmente é super-herói. Sem tanques, sem mísseis, sem nada, eles
vencerão, mostrando ao mundo o
seu lendário valor. Sim, isso um
dia ainda acontecerá, na realidade ou, pelo menos, nos quadrinhos. Quem viver verá.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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