São Paulo, quinta-feira, 14 de junho de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

Ladrão que rouba ladrão...

Muitas vezes, o contexto e o conhecimento da realidade nos levam a entender o que o redator quis informar, mas...

N AS DUAS COLUNAS anteriores, tratei de alguns casos de crase. Foram tantas as mensagens dos leitores sobre o assunto que eu já tinha decidido continuar a conversa, mas pouco antes de começar a escrever dei uma passadinha pela internet e encontrei esta maravilha: "Guindaste iça carro roubado em desmanche em São Paulo". Como faz um certo tempo que não trato de pérolas do gênero, resolvi falar do caso. A continuação da conversa sobre crase fica para depois.
O leitor já percebeu onde está o nó? Para variar, está na ordem dos termos -mais precisamente, na posição da expressão "em desmanche em São Paulo". O senso comum nos leva a supor que a intenção do redator fosse informar que o içamento ocorreu num desmanche em São Paulo. A leitura literal, no entanto, permite entender que o carro içado foi roubado num desmanche em São Paulo. Ladrão que rouba ladrão...
O problema é velho e bem conhecido: a posição de certas expressões pode ser dinamite pura. Em muitos casos, o contexto e o senso comum nos levam a deduzir o que o redator quis informar. Em outras situações, no entanto, só a leitura do texto permite que se desvende o "mistério". Veja estes casos: "Motoristas que abusam do álcool freqüentemente são punidos pelos órgãos de fiscalização do trânsito"; "Motoristas que abusam do álcool freqüentemente deveriam perder o direito de dirigir". Há duplo sentido nas duas frases, só em uma ou em nenhuma ?
Uma breve análise descarta o duplo sentido na segunda frase. O senso comum nos faz supor que "freqüentemente" se refere a "abusam" -perder freqüentemente o direito de dirigir não parece condizer com a realidade ou com a legislação, isto é, não se perde semanalmente (ou mensalmente etc.) o direito de dirigir. Mesmo assim, a melhor redação seria esta: "Motoristas que freqüentemente abusam do álcool são punidos pelos...". E a primeira frase? Releia-a, por favor. E então? A que termo se refere o advérbio "freqüentemente"?
A "abusam" ou a "são punidos"? Bem, se levarmos ao pé da letra a nossa sórdida realidade... No nosso triste Brasil, ninguém é punido por encher a cara, assumir o volante de um carro e aleijar, mutilar, matar.
Deixando a profundidade de lado (como diria Belchior, na bela "Divina Comédia Humana"), fiquemos com a estrutura da frase, que permite, sim, dupla interpretação: "Os motoristas que freqüentemente abusam do álcool são punidos pelos órgãos de fiscalização" ou "Freqüentemente os motoristas que abusam do álcool são punidos"? Por fim, relembro um caso "clássico" (publicado numa revista e incluído numa prova da Unicamp): "O presidente americano produziu um espetáculo cinematográfico (...) na Arábia Saudita, onde comeu peru fantasiado de marine no mesmo bandejão em que...". Quem estava fantasiado de fuzileiro naval estadunidense? O senso comum nos impede de imaginar que, antes de irem para a bandeja, perus sejam fardados, mas a estrutura da frase permite essa interpretação.
Para limpar o terreno, basta inverter a posição da expressão "fantasiado de peru": "O presidente (...) na Arábia Saudita, onde, fantasiado de marine, comeu peru...". É isso.

inculta@uol.com.br


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