|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
Ladrão que rouba ladrão...
Muitas vezes, o contexto e o conhecimento da realidade nos levam a entender o que o redator quis informar, mas...
N AS DUAS COLUNAS anteriores,
tratei de alguns casos de crase. Foram tantas as mensagens dos leitores sobre o assunto
que eu já tinha decidido continuar a
conversa, mas pouco antes de começar a escrever dei uma passadinha
pela internet e encontrei esta maravilha: "Guindaste iça carro roubado
em desmanche em São Paulo". Como faz um certo tempo que não trato de pérolas do gênero, resolvi falar
do caso. A continuação da conversa
sobre crase fica para depois.
O leitor já percebeu onde está o
nó? Para variar, está na ordem dos
termos -mais precisamente, na posição da expressão "em desmanche
em São Paulo". O senso comum nos
leva a supor que a intenção do redator fosse informar que o içamento
ocorreu num desmanche em São
Paulo. A leitura literal, no entanto,
permite entender que o carro içado
foi roubado num desmanche em São
Paulo. Ladrão que rouba ladrão...
O problema é velho e bem conhecido: a posição de certas expressões
pode ser dinamite pura. Em muitos
casos, o contexto e o senso comum
nos levam a deduzir o que o redator
quis informar. Em outras situações,
no entanto, só a leitura do texto permite que se desvende o "mistério".
Veja estes casos: "Motoristas que
abusam do álcool freqüentemente
são punidos pelos órgãos de fiscalização do trânsito"; "Motoristas que
abusam do álcool freqüentemente
deveriam perder o direito de dirigir". Há duplo sentido nas duas frases, só em uma ou em nenhuma ?
Uma breve análise descarta o duplo sentido na segunda frase. O senso comum nos faz supor que "freqüentemente" se refere a "abusam"
-perder freqüentemente o direito de dirigir não parece condizer
com a realidade ou com a legislação, isto é, não se perde semanalmente (ou mensalmente etc.) o direito de dirigir. Mesmo assim, a
melhor redação seria esta: "Motoristas que freqüentemente abusam
do álcool são punidos pelos...".
E a primeira frase? Releia-a, por
favor. E então? A que termo se refere o advérbio "freqüentemente"?
A "abusam" ou a "são punidos"?
Bem, se levarmos ao pé da letra a
nossa sórdida realidade... No nosso
triste Brasil, ninguém é punido por
encher a cara, assumir o volante de
um carro e aleijar, mutilar, matar.
Deixando a profundidade de lado
(como diria Belchior, na bela "Divina Comédia Humana"), fiquemos
com a estrutura da frase, que permite, sim, dupla interpretação: "Os
motoristas que freqüentemente
abusam do álcool são punidos pelos órgãos de fiscalização" ou "Freqüentemente os motoristas que
abusam do álcool são punidos"?
Por fim, relembro um caso "clássico" (publicado numa revista e incluído numa prova da Unicamp):
"O presidente americano produziu
um espetáculo cinematográfico (...)
na Arábia Saudita, onde comeu peru fantasiado de marine no mesmo
bandejão em que...". Quem estava
fantasiado de fuzileiro naval estadunidense? O senso comum nos
impede de imaginar que, antes de
irem para a bandeja, perus sejam
fardados, mas a estrutura da frase
permite essa interpretação.
Para limpar o terreno, basta inverter a posição da expressão "fantasiado de peru": "O presidente (...)
na Arábia Saudita, onde, fantasiado
de marine, comeu peru...". É isso.
inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Metroviários prometem parar hoje por reajuste Próximo Texto: Trânsito: CET monitora trânsito para desfiles do SP Fashion Week Índice
|