São Paulo, terça-feira, 14 de agosto de 2001

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MARILENE FELINTO

A vaga dos que não cabem no mundo

Quando a tragédia é africana, a mídia não mostra fotos, não lhe dedica nem metade do espaço que dá aos conflitos do Oriente Médio, da Macedônia ou da Rússia.
A tragédia africana aconteceu sexta-feira, quando uma centena de angolanos morreu e quase 150 ficaram feridos na explosão de uma mina que atingiu um trem de passageiros.
A locomotiva foi emboscada por um comando da Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola), cujos soldados ainda atiraram nos sobreviventes. Angola está em guerra civil há mais de 20 anos. Alguém soube? Havia apenas uma ou duas notas nos jornais e telejornais de domingo. E Angola fala português!
Os números da África pouco importam ao mundo. Esses mesmos números vi refletidos outro dia numa pesquisa de doer o coração: sobre como mulheres negras, no Brasil, terminam sozinhas na vida, sem parceiros, mais do que as brancas. São menos desejadas, ou desejadas apenas como amantes.
Uma amiga americana negra comentou comigo um caso típico: a amante negra ligou para a casa do amante branco, casado. Tinham feito sexo no dia anterior, na casa dela, onde ele sempre tivera passagem livre. Ela, apaixonada, ligou para a casa dele no dia seguinte. Mas o homem desligou o telefone ao ouvir sua voz. Talvez a mulher (a esposa, a dona da vaga) estivesse perto. A amante não teve dúvida, ligou de novo e deixou uma mensagem irada na secretária eletrônica.
No outro dia, ela encontrou recado dele em sua própria secretária: "você ontem ultrapassou um limite que não precisava". Mais irada, a amante escreveu em letras grandes uma resposta por e-mail: "Limite? Quem precisa de limite é você! Sai da minha vida! Quem é você para dizer do que eu preciso ou não preciso? Sexo (ou amor?) tem consequência. Você é um inconsequente. Eu não sou prostituta." Nunca enviou a mensagem. Ficou remoendo a mágoa sozinha, ela e suas letras grandes.

Essas indecências impressionam. O grau de cinismo que as pessoas podem atingir, em pequena escala nas suas vidas privadas, ou nas macro esferas político-econômicas, essas que ditam que a África deve aparecer menos na mídia do que o Oriente Médio, não importa o tamanho da tragédia.
Outro exemplo: não foi indecente a corrida à vaga deixada por Jorge Amado na ABL (Academia Brasileira de Letras) logo após sua morte? Não que a ABL seja grande coisa: uma instituição inútil, que só existe para alimentar a vaidade de intelectuais medíocres, com raras exceções. O próprio Jorge Amado não passava de um escritor mediano. Mas querer substituí-lo, na beira do túmulo, por outros de porte até inferior -como Jô Soares, Paulo Coelho ou a própria Zélia Gattai-, é demais.

Perueiros de São Paulo se vestiram de travestis na semana passada para chamar a atenção da prefeita Marta Suplicy. Como a prefeita é a ideóloga do projeto de lei da parceria civil entre gays, os perueiros alegaram que ela só se interessa por gays. Essa apropriação preconceituosa do lugar do outro revela o quanto a ignorância acentua preconceitos. Perueiro é gente truculenta.
Está certa a prefeita. Eles estão na classe dos sem-emprego, dos sem-renda, mas não podem entrar sem lei numa cidade já caótica. As peruas enfeiam a paisagem, põem em risco a vida das pessoas. Tudo é guerra civil. Aqui tanto quanto em Angola, para as amantes negras, os travestis, os sem-vaga no bonde social.

E-mail: mfelinto@uol.com.br



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