|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARILENE FELINTO
A vaga dos que não cabem no mundo
Quando a tragédia é africana, a mídia não mostra
fotos, não lhe dedica nem metade
do espaço que dá aos conflitos do
Oriente Médio, da Macedônia ou
da Rússia.
A tragédia africana aconteceu
sexta-feira, quando uma centena
de angolanos morreu e quase 150
ficaram feridos na explosão de
uma mina que atingiu um trem
de passageiros.
A locomotiva foi emboscada
por um comando da Unita
(União Nacional para a Independência Total de Angola), cujos
soldados ainda atiraram nos sobreviventes. Angola está em guerra civil há mais de 20 anos. Alguém soube? Havia apenas uma
ou duas notas nos jornais e telejornais de domingo. E Angola fala
português!
Os números da África pouco
importam ao mundo. Esses mesmos números vi refletidos outro
dia numa pesquisa de doer o coração: sobre como mulheres negras, no Brasil, terminam sozinhas na vida, sem parceiros, mais
do que as brancas. São menos desejadas, ou desejadas apenas como amantes.
Uma amiga americana negra
comentou comigo um caso típico:
a amante negra ligou para a casa
do amante branco, casado. Tinham feito sexo no dia anterior,
na casa dela, onde ele sempre tivera passagem livre. Ela, apaixonada, ligou para a casa dele no
dia seguinte. Mas o homem desligou o telefone ao ouvir sua voz.
Talvez a mulher (a esposa, a dona
da vaga) estivesse perto. A amante não teve dúvida, ligou de novo
e deixou uma mensagem irada
na secretária eletrônica.
No outro dia, ela encontrou recado dele em sua própria secretária: "você ontem ultrapassou um
limite que não precisava". Mais
irada, a amante escreveu em letras grandes uma resposta por e-mail: "Limite? Quem precisa de limite é você! Sai da minha vida!
Quem é você para dizer do que eu
preciso ou não preciso? Sexo (ou
amor?) tem consequência. Você é
um inconsequente. Eu não sou
prostituta." Nunca enviou a mensagem. Ficou remoendo a mágoa
sozinha, ela e suas letras grandes.
Essas indecências impressionam. O grau de cinismo que as
pessoas podem atingir, em pequena escala nas suas vidas privadas,
ou nas macro esferas político-econômicas, essas que ditam que a
África deve aparecer menos na
mídia do que o Oriente Médio,
não importa o tamanho da tragédia.
Outro exemplo: não foi indecente a corrida à vaga deixada
por Jorge Amado na ABL (Academia Brasileira de Letras) logo
após sua morte? Não que a ABL
seja grande coisa: uma instituição
inútil, que só existe para alimentar a vaidade de intelectuais medíocres, com raras exceções. O
próprio Jorge Amado não passava de um escritor mediano. Mas
querer substituí-lo, na beira do
túmulo, por outros de porte até
inferior -como Jô Soares, Paulo
Coelho ou a própria Zélia Gattai-, é demais.
Perueiros de São Paulo se vestiram de travestis na semana passada para chamar a atenção da
prefeita Marta Suplicy. Como a
prefeita é a ideóloga do projeto de
lei da parceria civil entre gays, os
perueiros alegaram que ela só se
interessa por gays. Essa apropriação preconceituosa do lugar do
outro revela o quanto a ignorância acentua preconceitos. Perueiro é gente truculenta.
Está certa a prefeita. Eles estão
na classe dos sem-emprego, dos
sem-renda, mas não podem entrar sem lei numa cidade já caótica. As peruas enfeiam a paisagem, põem em risco a vida das
pessoas. Tudo é guerra civil. Aqui
tanto quanto em Angola, para as
amantes negras, os travestis, os
sem-vaga no bonde social.
E-mail: mfelinto@uol.com.br
Texto Anterior: Vizinhos gastam R$ 4.000 para equipar delegacia Próximo Texto: CET adota mão dupla em vias do Tremembé Índice
|