São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

Por falar na segunda pessoa...


Quero continuar a conversa, passando agora para a outra segunda pessoa, a do plural, esta, sim, em franco desuso


NA SEMANA PASSADA, escrevi sobre o emprego da segunda pessoa (do singular, especificamente). O mote foi a "tese" de que a segunda do singular está caduca, já morreu etc., o que tornaria descabido e anacrônico seu emprego hoje em obras literárias, peças de teatro etc.
Como vimos pelos exemplos dados na última coluna, a coisa não é tão simplória assim. É fato que a segunda do singular não frequenta a oralidade de 100% dos brasileiros, mas não se podem ignorar seus registros nos diversos falares do país.
Como se sabe, a oralidade é apenas um dos registros que se levam em conta quando se quer determinar a frequência do uso de algumas formas ou construções. Como vimos, a segunda do singular, em sua versão "clássica", é usual em escritos clássicos e modernos (na poesia e nas letras da nossa música).
Posto isso, quero continuar essa conversa, passando agora para a outra segunda pessoa, a do plural ("vós"), esta, sim, em franco desuso, seja na oralidade, seja na escrita, o que não significa que a escola deva simplesmente escondê-la dos alunos, sob o tosco, obscuro e obscurante argumento de que caducou.
Todos têm o direito de entender, por exemplo, o que significa esta passagem, do Padre Vieira: "A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós é que vos comeis uns aos outros. (...) Mas, para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos...". O que é ou o que significa "considerai"?
Certa vez, a Unesp pediu aos candidatos que apontassem, num trecho do "Sermão da Sexagésima" (Vieira), a única passagem em que o pregador se dirige diretamente ao público. Pouquíssimos acertaram. A resposta era "reparai", forma da segunda pessoa do plural (vós) do imperativo afirmativo de "reparar". Que revela o fato de poucos terem acertado, ou seja, de poucos entenderem o que leem, quando se trata desse tipo de registro? Tire suas próprias conclusões, caro leitor.
O caro leitor certamente espera o comentário sobre as formas "considerai" e "reparai". Ambas são do imperativo afirmativo, cuja formação é híbrida. As duas segundas pessoas ("tu" e "vós") resultam da supressão do "s" final das respectivas formas do presente do indicativo. De "considerar", por exemplo, temos "tu consideras" e "vós considerais", que, sem o "s" final, passam a "considera" e "considerai".
A forma "reparai", do sermão de Vieira, resulta da eliminação do "s" final de "reparais" ("vós reparais" é a segunda pessoa do plural do presente do indicativo de "reparar"). Ao dizer "reparai", o pregador se dirige às pessoas que ouvem o sermão, a quem trata por "vós". Na linguagem atual, essa forma daria lugar a "reparem", da terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo.
Recentemente, um leitor me pediu explicações sobre a genial canção "Brasil Pandeiro", do grande Assis Valente. "Que significam as passagens "Esquentai vossos pandeiros" e "Batucada, reuni vossos valores'?". O desconhecimento dessas formas é tal que, ao conferir a letra num site (letras.mus.br), vi que a segunda passagem virou "Batucada, reunir nossos valores". Elaiá!
Acho que não preciso explicar "esquentai", certo? Quanto a "reuni vossos valores", temos aí "reuni", segunda do plural do imperativo afirmativo de "reunir", cujo presente do indicativo é "eu reúno, tu reúnes... vós reunis...". Com a eliminação do "s" de "reunis", chega-se a "reuni". Trata-se, pois, de um pedido, de uma ordem dada à Batucada, elevada ao grau máximo de respeito, e não de uma afirmação relativa ao passado ("eu reuni"). É isso.

inculta@uol.com.br


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