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OPINIÃO
E havia uma bala na agulha
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Em 2004 , acabara de voltar de uma viagem de
trem Madri/Paris/Madri, com a mulher e os netos,
quando terroristas explodiram
trens em diferentes estações de
Madri e adjacências. Agora, no
fim do ano passado, estivemos
por três vezes no estacionamento do Terminal 4 do aeroporto de Barajas, para retirar e
devolver carro alugado, dias antes de terroristas bascos demolirem praticamente todo o estacionamento, matando dois
equatorianos.
Não obstante o perigo claro e
iminente, nunca, antes ou depois desses episódios, senti medo em Madri. Ao contrário. Cada vez que chego, sinto-me "arropado" pela cidade, essa expressão espanhola que traduz
melhor o se sentir acolhido e
abrigado do que qualquer palavra em português.
Já São Paulo, a cidade em que
nasci e vivi a vida toda, exceto
quatro anos como correspondente desta Folha no exterior, percebo-a inóspita. Aqui, ao contrário do que aconteceu com os
episódios de Madri, senti-me
tragado pela cratera aberta na
obra do metrô -até por ser a
marginal Pinheiros caminho
relativamente habitual.
A tragédia só reforça a já antiga sensação de que sair de casa em São Paulo é uma roleta-russa: você, cidadão (e contribuinte), nunca sabe se será naquele dia e naquela hora que
haverá uma bala na agulha e ela
estourará no teu colo/cabeça/
peito, seja lá onde for.
Sei que há um forte componente paranóico nessa percepção. A esmagadora maioria dos
que vivem na cidade sai e volta
para casa inteirinho. Mas é a tal
história: no tambor do revólver
da roleta-russa, só há uma bala
em seis buracos (pelo menos
nos revólveres do tempo em
que se inventou a roleta-russa).
Não depende de você, mas da
sorte ou do azar, a bala estar ou
não no buraco na hora em que
você acionar o gatilho.
É essa impossibilidade de
controlar minimamente os riscos para a sua vida (ou, como
no caso do buraco do metrô,
também a sua casa) que torna
angustiante a vida na cidade.
Há algo mais trivial, inocente
e aparentemente seguro do que
dar uma volta de carro pelo
bairro (no caso, Pinheiros),
ainda mais durante o dia? De
repente, está lá a bala na agulha, abre-se um buraco e te engole.
Os "buracos" são de vários tipos e tamanhos, todos arquiconhecidos: assalto, roubo, seqüestro, enchente, congestionamentos infernais (que podem não matar no ato, mas de
tanto se repetirem matam um
pouco por dia). Tão arquiconhecidos que foram incorporados à rotina. A gente já nem reclama deles, e até estranha
quando nenhum desses "buracos" se abre no seu dia.
A rotina inóspita tem tal dimensão que parece não haver
culpados. O governo do Estado
estava informado de que a obra
que desabou tinha problemas?
Sabia, confessa o secretário José Luiz Portella. Fez o que tinha que fazer? Diz que fez. Mas
como a obra é complexa, na
avaliação dos especialistas, a
causa do acidente será necessariamente complexa e, por extensão, ninguém será responsabilizado.
Por isso, poucos paulistanos
sentem-se "arropados" pelo
poder público (estadual e municipal). Tanto que o proprietário de um apartamento em prédio próximo ao buraco do momento torce para que o guindaste caia sobre o prédio, para
poder receber o seguro devido.
É para ele a única solução,
porque tem compreensível medo de voltar a viver no apartamento e sabe que ninguém o
comprará a não ser a preço de
banana, porque fica em uma
área em que havia, sim, uma
bala na agulha na roleta-russa
diária do paulistano.
Para ser franco, sentia menos medo na cobertura da
guerra civil em El Salvador, nos
anos 80. Ali, o risco era evidentemente maior, mas até certo
ponto havia como calculá-lo.
Sabia que, em certas áreas e
certas horas, havia não uma
mas incontáveis balas na agulha. Aqui, você pode sumir de
repente numa rua aprazível de
um bairro aprazível, o último
lugar do mundo em que deveria haver bala na agulha.
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